sábado, 24 de fevereiro de 2018

O rito que conduzo à faculdade de medicina

Os alunos da faculdade em que me formei médico criaram para mim um ritual. E quando falo em ritual, quero dizer com todo a força religiosa dele, ou quase.

Ritual é um gesto solene que é repetido por um profitente, acompanhado por seguidores, com uma ciclicidade que obedece certa lógica com o tempo astrológico. O gesto que se repete tem a ver com uma ação fundadora de um cosmos, inaugurado por um ser que assim sacralizamos (ou o reconhecemos como sagrado). O sagrado tem a ver com sacrifício, não porque o matamos, mas porque o elevamos ao patamar da eternidade (ou o reconhecemos como filho dela). Quis quase toda a história da humanidade que isso se desse com a morte do ser. Mas, no fundo, a morte não é necessária se não em termos simbólicos. Sempre é preciso que o ser que fundou o gesto primordial morra para o efêmero e renasça para o eterno. Aquele que fica responsável por reinaugurar o gesto a cada geração, por estar mexendo com o sagrado, é dito sacerdote. Assim é, por exemplo, a santa ceia de Cristo que antecede sua crucificação e até mesmo culmina nela. A morte de Cristo ilumina a ceia que a antecedeu tornando-a santa. Desde então, cristãos do mundo inteiro revivem a partilha do pão e do vinho semanalmente e, em um dia do ano, entram em um jejum simbólico de quarenta dias a fim de assimilar no espírito a mística partilha do corpo de Cristo dilacerado na cruz, vertendo seu sangue para cobrir a humanidade de seus pecados.

Esse ritual era o mais forte que tínhamos na civilização ocidental. Hoje está esvaziado de seu poder pela descrença nas realidades metafísicas que se instaurou na população em geral. O laboratório da ciência se tornou o altar em que as hipóteses se transubstanciam em verdade, aguardadas sequiosamente por um séquito de acadêmicos que se curvam em frente das evidências - que morrem a cada cinco anos, e cada vez em menos tempo. A mídia e as redes sociais, para grande parcela da população, se tornaram, de outro modo, o altar em que os boatos se transubstanciam em fatos, devoradas voluptuosamente pelos participantes dos ritos de assistir e postar - que morrem tão logo são postados. Quer dizer, outras metafísicas canibalizaram o ritual de Cristo, sem o devido sucesso de apaziguar os ânimos e melhorar as pessoas que este teve durante quase dois milênios.

Falava, então, do ritual que os meninos e meninas da faculdade de medicina fazem eu viver, re-viver, construir e re-construir quase todos os semestres, quando os recém-ingressos vivenciam a primeira semana de recepção.

O ritual consiste em eu narrar a minha história de derrota na faculdade durante quarenta minutos. O discurso é ponteado de graças, e vai mostrando o quanto eu, este médico relativamente bem-sucedido de uma década de profissão, sou igual a eles. Vou descrevendo o mesmo padrão de vontade de primeiros lugares, passando pelos mesmos professores de cursinho, com a mesma felicidade alardeada ao mundo, amparada calorosamente pelos pais. Depois vou falando de cada cena de frustração na faculdade. Aqui e ali falo de uma grande lição que aprendi e que quero que eles desde já tenham em mente. De todas elas, a principal: amigos. A principal antes da que culmina essa história: a relação entre mim e meu pai.

É quando conto da vontade de libertação, de firmar minha identidade separada da sombra daquele que pareceu ser sempre meu maior modelo. Não foi um modelo ruim, pelo contrário. Mas, era hora de eu ser Eu. Nesse momento, sinto que quase todos estão, enfim, identificados comigo. Já não sou eu quem falo, mas eles que falam em mim. É quando começo a descrever o mal-estar de papai quando falei querer sair da faculdade quase ao final dela. O processo de encontro autêntico com a medicina que enfim gostava de fazer: a medicina de família. O contraditório e dialético processo de querer me libertar do velho e, de certa forma, ter conseguido ao alcançar dizer para ele o quanto eu queria ser eu e não ele pela primeira vez. Todavia, de ter me encontrado, de fato, no campo da medicina onde ele atuou e mais amou. Desisto de desistir da faculdade. O tempo passa um pouco, entro no internato. O inesperado acontece.

Agora, nessa unidade mística entre mim e a plateia, todos nós somos conduzidos a aflição de ver meu pai pálido sobre um sofá na recepção do prédio. Todos nós tomamos meu pai nos braços, levamos ele ao pronto-socorro mais próximo, ultrapassando os sinais vermelhos, entregando seu corpo a uma cadeira de rodas, deixando que os médicos massageiem seu peito, que o coração havia parado. Alguns choram comigo. A maioria está em silêncio extático. Conto como só a partir daí a medicina nasceu em mim, como que ressuscitado aquele homem em meu corpo. No momento em que o enterrava, seus pacientes, da cidade que assistiu, vão contando grandes aventuras em que se embrenhou para os ajudar. A cidade, em peso, o enterrou. O padre vai à casa em que o velávamos fazer a missa de corpo presente, e papai nem católico era.

Eis porque acho que essa história deixa vontade de a ouvir de novo e mais uma vez: é porque refaz o drama de Cristo, o fundador de nossa civilização ocidental. De uma forma singularmente simbólica. Ela segue a mesma estrutura narrativa dos evangelhos. Apresento-me como partícipe de uma linhagem sagrada que me faz parente de todos aqueles que me ouvem. Vou me identificando com os aflitos de toda ordem, aqueles que temem serem devorados por uma via-crucis de recuperações ou reprovações. Apresento a minha morte para meu pai, e logo depois a morte de meu pai para mim, para, então, falar como meu pai ressurgiu em mim, me tornando mais eu do que nunca.

Não é uma blasfêmia esta comparação. Os grandes monges da idade média tinham em mente que a vida autêntica era aquela que imitava a do Cristo. Os grandes místicos entendiam o quanto a vida do Cristo era um oceano em que o caudal de nossa história desaguava. Nascer no opróbrio, ser amado por muitos, enfrentar o deserto, ser içado à cruz, ressuscitar ao terceiro dia. Uma grande vida percorre estes caminhos, muitas vezes percorre amiúde. São vários nascimentos em meios indignos, vários amores, desertos, cruzes e ressurreições. Claro, que um exemplo menor destes não tem o poder de fundar uma civilização, mas ao menos acalmar um pouco a angústia de neófitos corações, deve ter, senão, por que me chamar de novo e mais uma vez? 


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