sábado, 31 de janeiro de 2015

Quando me descobri

Havia falado que não consegui me expor a contento à reunião passada. Dei contribuições, mas a conversa não fluiu. Me senti em um interrogatório, não entre irmãos. Pois bem, ontem me senti entre irmãos.

Estive ao centro de saúde onde vou tentar guiar estudantes em suas aprendizagens práticas e, junto com meus colegas professores, fui explicar minhas ideias, exultante, olhos aquecidos, gestos bailantes.

Lembrei, então, do meu renascimento. Onde comecei a remedicinar-me. Desisti de prestar concurso para entrar em qualquer residência médica. Também não podia ir para o interior por motivos familiares. Havia um centro de saúde relativamente perto lá de casa onde fui buscar emprego.

- Pagam pouco aqui. - desmotivou-me uma enfermeira.
- Mais que minha mesada deve  ser. - pensei.

E foi mais que a mesada, de fato. Foi mais que qualquer dinheiro, também. Foram as amizades com todos os enfermeiros da estratégia de saúde da família, a cumplicidade com a que era da minha equipe, os papos não-farmacêuticos com a farmacêutica, os aprendizados sobre pré-natal, sobre técnicas de exame de prevenção do câncer de colo do útero, o manejo de atividades grupais em educação popular, e sobre administração de fármacos. O caldo de ovo gentilmente oferecido pela agente de saúde quando eu estava atendendo, as piadas do outro agente, o respeito (embora nunca tenha cobrado que me chamassem de doutor), as brincadeiras e as fofocas entre os turnos, os almoços com a turma toda, os seminários de atualização sobre nossas práticas, os desabafos, as angústias, as dúvidas. A despedida.

Quando me despedi daquele ano, na festa que me aprontaram, agradeci e chorei. Eu assumi tanto aquelas pessoas, os colegas, os amigos e as doenças dos pacientes que, ao final, estava com minha psoríase estourada, uma perna manca de tanta tensão muscular, os olhos fundos. Mas, agradeci! Por terem me tornado médico. O que, sem medo de exageros, foi o que fizeram e o que seis anos de faculdade não.

Onde eu renasci carrego comigo nos sentimentos mais calorosos. Aonde renasci estou voltando: medicina comunitária.


sábado, 24 de janeiro de 2015

Expondo-me em público

A evolução:

1. Eu não me expunha porque tinha medo do julgamento alheio. Criava cenas na cabeça de como seria se me expusesse. Dessa capacidade de pensar em diálogos dei origem ao ofício de dramaturgo a que, às vezes, me entrego. Mas, minhas peças reais sempre terminam com finais felizes. Quando não, entendo que ainda não acabaram. Os críticos delas, cristãos todos, sempre me estimulavam a essa perspectiva otimista da realidade. Na faculdade, os finais, sempre em mim, sem críticos, sem leitores de mim, eram trágicos. Resultado: laconismo.

2. Na outra metade da vida, me expunha até demais. É que na arte não há verdade, e cada gesto e palavra é encarado como criação. As críticas não te devolvem ao certo, mas ao belo. Palestras, depois de muito ter estudado a doutrina em que fui criado, começaram a fluir. O público, todos cristãos, sempre são sorrisos. Raramente tive alguém para me dizer qual a verdade da doutrina contra a mentira da minha exposição. As falas, constantemente, eram somativas. Se no começo gaguejava, depois passei a calcular passos, hoje quase sou natural. Me sinto bem.

3. Voltei a um universo de verdades. Entrei em um curso de palhaços. Havia uma pessoa que nos dizia o que era melhor, o que parecia esteticamente mais atraente. Eram verdades, sim, mas sensíveis, sutis e graciosas. As pessoas ousavam com seus corpos no palco. As verdades eram bem mais soltas, dançavam. A criação importava muito, mas sem tensão, sem frouxidão também. Era uma experimentação semanal para chegar no ponto certo. Experienciei uma outra forma de taquicardia, não mais do medo, mas da aventura quando eu era o próximo a ser desafiado. É que não me sentia desafiado. Sentia me desafiando.


4. Estive muito tempo exposto em púlpitos. Estudei muitos textos para transformar em palestras, didatizá-los. Um amigo querido me convidou, então, para sentar e escutar o grupo de estudo dele. Senti a grandeza de calar, de ouvir, de se deliciar com o raciocínio do outro, reconhecer a beleza das experiências dos mundos vizinhos. Eu participava pouco, com falas não tão importantes sobre as grandes filosofias que ia lembrando relacionadas a certas experiências dos indivíduos, que realmente importavam. 

6. Voltei para o universo das verdades, mas das verdades radicais. Os erros da medicina são intoleráveis. Estive em um círculo de treinamento de docentes. Hoje ouvi: "você gostaria de ser atendida por um médico que só soubesse de 32% do que deveria saber, que se vestisse de forma inadequada, barba mal feita, que se atrasasse para consulta". Verdades sociais: "uma mãe se negou a deixar que sua filha fosse consultada pelo menino tatuado, outra pela menina com rastafare". Voltou a falta de vontade de me expor, mas o fiz. Agora com o mesquinho sentimento de querer acertar o gabarito. Não alcancei a sinceridade, a naturalidade, a espontaneidade de uma conversa. Todavia, ainda contribuí com a roda lembrando que literatura médica poderia ser uma poesia, uma filosofia, uma pedagogia, quando todos falavam sobre revistas indexadas e qualis. Graças a Deus meus pares concordaram! São pessoas boas, cheias de uma vontade de fazer o certo. E deve fazer mesmo. O que me incomoda é a existência ontológica do certo. "A criação é permitida, contanto que se cumpra a grade curricular, que se chegue no objetivo". 

Alguma coisa dentro de mim diz que deve ser assim mesmo, óbvio, são vida humanas! Mas, por isso mesmo, são humanas...

Crescendo

Fui convidado a participar de um curso sobre o método pedagógico que rege a instituição em que vou lecionar. Aquele cheiro de estudante de medicina guardado no fundo da última gaveta do armário da dispensa exala e entope minhas narinas de lembranças. Recordo tudo o que venho sendo. 

Fui tão inconformado com aulas. Sentia-me a todo instante fora de onde eu deveria estar, de onde eu era. O sono, a mudez. Observava tudo ao redor, menos a aula. Quando ia para a comunidade, me tomava olhando os jovens brincar de bola. Quando estava em ambulatório, me esquecia do mundo sentindo as gotas da torneira resfriar a superfície da unha. O professor sabia onde eu estava? Quase não sabia quem eu era! 

Dia desses apresentei minha qualificação de mestrado para um dos professores que eu mais admirava. Nela me expus sobre o gosto ruim de ter sido graduando de medicina. Ele se agradou muito com os relatos autobiográficos. E, revelou que ultimamente estava com essa angústia de ter pessoas passando por ele todo semestre sem realizar encontros autênticos. Eu havia sido seu aluno, e ele mal sabia de um décimo daquilo que havia se passado dentro de mim. 

O pior era que nem sempre fui assim. Nem sempre? Nunca havia sido! Em busca de responder, li sobre as muitas formas de se educar adultos (Paulo Freire, Freinet), e crianças (Pestalozzi, Korczak). Grandes leituras! Péssimos estímulos. Não me ajudavam a ser melhor aluno. À faculdade, sobrevivi. 

Eis que conheci marxistas, anarquistas e democratas que me deram razão. Falei das minhas experiências para alunos que me entendiam. Conheci maus alunos, ótimas pessoas, outras escolas. Participei de um projeto de palhaços, fiz curso de teatro, misturei-me com pessoas da dança e da música. Venho tendo contato com uma arte-educadora. Deus! Meu lugar não era lá, mesmo. 

Não me tornei um membro efetivo desse caminho alternativo que encontrei - um membro afetivo, talvez. Todavia, ficaram essas pessoas em mim feito bálsamo misturado ao sangue venoso de onde eu escorria. 

Ontem estive em uma aula à faculdade de medicina. Agora como professor e como especialista em saúde comunitária. Quiseram me falar que o aluno tinha de aprender a formar mapas conceituais com os conhecimentos exatos. Eu questionei onde eles aprenderiam a falar para as gentes, todos nós, os inexatos? Soltei piadas inocentes, fiz rir que fiz corar uma professora à minha época tida como exigente. Levantei a dúvida sobre os tímidos e os que, aparentemente, não se davam bem nesses sistemas de ensino. Em mim, uma certeza: não há ciência que não seja social nem autoconhecimento, tão pouco que não seja cuidado para com o ser humano. Tento passar isso adiante.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Ó! Vento rei

"Sou filho do vento e nele me sento"
Releio a vida ao relento
Tento de novo o que já tentei
Mas, dessa vez eu agüento

Se não...

Ora! Se não rei(n)-vento!

Remedicinar-me

Quando entrei na faculdade de medicina, tive um baque. Completamente o que não esperava. Sei lá o que eu esperava! Não era aquilo. Aulas monótonas, conteúdo árido, livros indigestos, referências bibliográficas esparsas. 

Tentei sobreviver. Com o tempo, alimentei repúdio contra tudo aquilo. Tudo. Tudo o que era medicina. Criei um blog, o des-medicina, cuja palavra de ordem era e-vis-ce-ra-ção. Colocar pra fora! Minhas entranhas. Aquela podridão. Meu corpo, o espírito rejeitava, reagia. 

Eu fazia teatro: abandonei. Eu ensinava a crianças assuntos do evangelho: desisti. Tinha que me tornar medicina. Não consegui. 

Três salvadores: O amor, A amizade, O humor. Casei com a mulher com quem reparto a vontade de envelhecer amando um ao outro. Cercaram-me amigos que me supriram de todos os meios para continuar estudando. Entrei em um projeto de doutores palhaços que pervertiam a figura do médico, a reinventando. 

Hoje, seis anos de formado, criei gosto por tudo na medicina como nunca poderia imaginar. Sei pouco, quase nada em relação a tudo que vem pela frente, mas não paro de me encantar, de me desafiar, de querer mais. Especializei-me em medicina de família e comunidade, estou mestrando em saúde pública e, agora, fui convidado para ensinar neófitos graduandos. 

Surge a vontade - a oportunidade - de tentar ensinar a medicina de uma forma completamente diferente. Como eu gostaria de ter sido ensinado?

Crio este blog para partilhar estas vivências. Que o erro seja o meu guia, para que por novos caminhos eu erre mais!