quarta-feira, 28 de março de 2018

Exercício ao primeiro semestre de medicina

O coordenador do primeiro semestre, para amenizar o peso da avaliação final escrita, para a qual quase todos os esforços dos alunos eram direcionados, decidiu convidar os professores para fazerem mini-testes ao final de cada aula que proferirem. Isso provocaria o estudo prévio de cada aluno para não ter a famosa maratona pré-prova. 

Como meu assunto, "Família: aspectos históricos e implicações na prática clínica", aborda temas que geram muito autoconhecimento, decidir não fazer um mini-teste, mas propor uma redação que estimulasse a pessoa a se reconhecer em que momento ela está na construção de sua personalidade. Este foi o mote:

"Trace uma linha imaginária entre o ser-menino ou ser-menina e o ser-homem ou ser-mulher, em que lugar você está? Comente."

 Exigência 1: Tem que ser NO MÍNIMO em uma página de Word ou  Google Docs. Por quê? Quero que falem de si, entrem no lugar existencial onde se encontram e tentem se entender, se localizar, se situar nesta vida. Quero que respirem fundo, desconectem-se da obviedade cotidiana, olhem para baixo e evidenciem o que aquele que sou é hoje. 

Alguns me mandaram apenas um parágrafo dizendo o óbvio: estou no meio desta linha. Nem sou um extremo, nem outro. Como se eu estivesse em busca de uma resposta certa, gabaritada.

Exigência 2: Prazo final é o dia 15 de maio. Isso faz 2 (dois) meses de liberdade de pensamento e escrita para essa aventura que propus. Fora desse dia, não aceitarei mais nenhuma escrita e a nota será o símbolo que nos dá a ideia do vazio. 

Bônus 1: Eu darei um retorno. 

Em vez de um teste que aborda apenas aspectos de memorização ou interpretação de texto, em movimentos de alma heterodirigidos, eu proponho um movimento de alma autodirigido. É uma expansão de consciência, um sair de si para voltar a si com mais lucidez. Claro que isso não é um movimento que pretende esgotar essa investigação, mas colocando isso logo no primeiro semestre da faculdade quero instigar a abertura de um processo que não cesse jamais. 

Como será a avaliação? Quem entregar e dialogar comigo, ganha. 


P.S.: Sinto que estão perdidos. Não é de se admirar pela natureza do desafio.  


sábado, 24 de março de 2018

Lidando com a vulnerabilidade

"Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change." 
(Mallarmé à Edgar Poe)

Neste pouco tempo em que estivemos conhecendo um grande centro de tratamento de pessoas portadoras de câncer, algumas cenas me chamaram a atenção. 

Primeiro, a presença de símbolos sagrados pelos lugares: a santíssima mãe da tradição católica em vários pontos, particularmente uma grande no centro do prédio, um quadro da santa seia no lugar onde se consomem as refeições junto ao abrigo filantrópico. Segundo, um culto religioso em alto e bom som no quarto andar do hospital. Terceiro, a discussão exegética entre dois rapazotes acerca da verdade da Palavra. 

Uma acadêmica traz uma história de sofrimento de certa idosa, e no meio fala que "porque ela tem fé, parece não temer a doença".  Outra traz novo relato em que o paciente refere ter entendido ser aquele agravo um castigo divino, por isso retornará para a igreja, da qual estava afastado, no lugar de cujas reuniões antes ia beber e se divertir com amigos mundanos.

Uma concepção antiga de psicologia, mas ainda vigente no imaginário de muitos psicólogos é que a religião é um enfrentamento inefetivo dos problemas, um retrocesso infantil em busca de colo na figura simbólica dos pais. Tolice!

Alguns comportamentos no âmbito religioso são menos efetivos que outros no caminho necessário do ser humano para a transcendência. Mas, a busca pela transcendência é o destino humano. Mesmo Sartre ou Marx não escaparam dessa nota. Sartre com seu homem devir. Marx com o devir de uma comunidade, enfim, justa, segundo os moldes apriorísticos que defendeu.

O ser humano, desde que nasce, é este projétil apontado para o infinito. A morte, para alguns, fecha o ciclo, para outros, inaugura-nos na eternidade. De todo modo, ela encerra o que melhor pudera ter acontecido na aventura de viver de alguém. 

É imperioso que saiamos dos condicionamentos biológicos que nos prendem às necessidades mais básicas - ditas baixas - em busca das altas possibilidades do espírito: o intelecto, a arte, a política, a religião. Claro que em todo lugar encontraremos análogos simbólicos das estruturas que foram o berço da nossa concepção de mundo. Dessa forma, sempre haverá um pai ou uma mãe que nos acolhe e nos impulsiona nos diferentes setores da vida que vamos galgando. A diferença é que, se formos bem sucedidos nessa caminhada, cada conquista nos eleva, nos torna maiores, ampliados, e senhores de nós mesmos em certo campo, nascendo para outros. O fim de tudo isso é o cosmos, diziam os gregos, é Deus, para os cristãos. Isto é, metas inatingíveis que nem por isso devamos nos eximir de as mirar.

Participar de cultos, espalhar imagens que remetam a arquétipos memoráveis, submeter-se a ritos, ler e discutir palavras de sabedoria que acumulam mais vida e voz do que nossas mirradas existências sonharão em ter não é infantilização, mas exercício de preparação para adequar-me ao eterno, sem que ele, antes do último suspiro, me esmague sem consolo. 

- "Nele mesmo, enfim, a eternidade o transforma."

sexta-feira, 9 de março de 2018

Sala de situação de neoplasias: pessoas que recebi na sala

Sei o quanto é importante ter números sobre as doenças que começamos a estudar na medicina. Dão uma ideia da situação daquele agravo na população. Permite-nos ter uma visão do impacto populacional, na economia, o peso para o setor saúde, etc. Todavia, queria falar de pessoas. 

Sabe quando você olha para uma luz forte e ela fere sua retina, de tal forma que quando fecha a pálpebra lhe vem aquela mancha luminosa? Alguns pacientes que tive sob meus cuidados e pessoas em minha proximidade foram assim. 

Havia um senhor de cinquenta anos com neoplasia de estômago. O tumor havia crescido, dificultando a passagem de alimentos sólidos. Chegou à enfermaria já em uso de sonda nasogástrica. Eu era interno no hospital geral que o recebeu. Era a primeira vez que acompanhava alguém jovem e independente usando sonda de rotina, mesmo fora da internação. Quando fui colher sua história, passou-me um papel com uma letra de forma perfeita. Havia organizado sintoma por sintoma em torno de uma cronologia precisa de seus aparecimentos. Com uma voz rouca e um jeito que buscava esconder o incômodo da sonda, como que parecendo um príncipe ferido, pediu para que eu ficasse com o papel, a fim de ajudar a ciência. Ele sabia que a ciência não o ajudaria a tempo. Seria para as futuras gerações. Guardei aquele papel com zelo em uma caixinha na cabeceira da cama até eu mudar de casa e algumas coisas se perderem na mudança. 

Menino que era à faculdade, quase não tive a experiência de ter seios femininos nas mãos. A vivência da palpação da mama me era quase sagrada. Sabia que a exposição que a paciente me oferecia era uma concessão frágil, doída, tímida a mais não poder. O professor vigiando minha mão promovendo aquela palpação me fazia suar ainda mais. Um nódulo, então, me parou: duro, irregular, aderido a planos profundos. O mamilo não expressava nada. Explicamos que teríamos de investigar. Era provável ser um câncer. A pessoa chorou assustada. Senti que o professor se compadecia, mas não tinha palavras, ditava o que eu devia pôr no prontuário. Queria ter alguma palavra para dizer, mas precisava dar vazão ao ditado. Finda a consulta, lágrimas secas, a mulher sai levando os papéis necessários para a investigação.

Os cânceres de pele, de vez em quando apareciam com uma devastação local, principalmente em face, mas raramente metástase. A não ser o melanoma, cujo protocolo de mutilação da pele o residente fazia questão de explicar quantos centímetros eram necessários retirar a fim de ter margem livre de doença, e investigar linfonodos para estimar seguramente o prognóstico. O melanoma merecia explicação. 

Nos elevadores do prédio em que mamãe mora há mais de vinte anos, acabávamos conhecendo a silhueta da vizinhança. Na década que morei lá, vi casais se formarem e se desfazerem, mulheres surgirem grávidas pela porta, filhos novos vindo da maternidade, idosos deixando de entrar. Um dos casais que vi se desfazer, tomei conhecimento fora do elevador. Ela chorava desesperadamente a morte do marido. No flanerógrafo, um papel convidava para o velório e à missa. Um câncer de próstata agressivo consumira o homem em um ano, pelo o que meus olhos puderam calcular. Tinha um pouco mais de cinquenta. Seus filhos ainda eram adolescentes.  

O câncer colorretal me chegou mais nos ambulatórios da atenção primária. Não em sua crueza e evidência, mas na necessidade de eu propor, praticamente impondo, colonoscopias para sexagenários com anemia e constipação, ou sangue visível nas fezes. Meu pecado dos primeiros anos de formado: nunca consegui dizer para eles, olho no olho. A maioria chegava calado e acompanhado ao consultório, deixava o parente cuidador falar. Nessa circunstância, pedia um tempo com a família e revelava a suspeita, tanto mais quanto mais estigmas de doença ativa o idoso apresentasse, como por exemplo a consumpção.

- Se estivéssemos em país desenvolvido, dizia eu, haveria um programa de rastreamento que proporia uma colonoscopia a cada dez anos, a partir dos cinquenta. Não teria chegado a ter sintoma, e o que fosse identificado teria sido retirado com alta probabilidade de cura. É melhor pedirmos. É um exame chato, mas necessário. - a parente entendia e agilizava.     


***

Eu tinha cerca de dezoito anos quando vovó chegou na nossa casa para ficar. Ela ignorava que não iria mais voltar para a casa dela, para a cidade dela. O câncer já tinha invadido os dois pulmões. Era irressecável, disse o cirurgião torácico para o papai e para ele somente. Por um medo que o câncer se espalhasse ainda mais rápido com a revelação, decidiram não falar nada à vovó. 

Uma tosse persistente e seca martelava a casa. Pálida, andava cansada da cama para a rede, para a outra cama, para a primeira cama, e de novo, até não ter mais forças para andar ou sequer falar. Não lembro quantos meses foram, mas foi rápido. 

Meu irmão mais velho, que praticamente foi criado por ela, certa noite chegou bêbado em casa. Era a tristeza de vê-la daquele jeito e a falta de horizonte. Ela quis sair da rede e não pôde. Ele tentou carregá-la nos braços e faliu. Foi chorar no meu quarto. Não sabia o que dizer. Toquei em seu ombro como tentando partilhar da falência. 

Papai havia contratado uma técnica de enfermagem. Fez os cuidados paliativos todos em casa. Soro, morfina oral, injetável. À época não se falava em adesivos. 

Um dia cheguei do colégio, e vovó roncava. Não era um ronco normal. Eram os estertores do final da vida. A hipóxia extrema ou talvez uma metástase no cérebro a fez perder a consciência e o controle da língua. A flacidez dos músculos da entrada das vias aéreas misturada com a saliva provocavam aquele som. Mesmo inconsciente, esperou meu irmão - seu neto-filho - chegar para partir. Papai anunicou a proximidade do desenlace. Mamãe, conforme o costume do interior do Nordeste, foi pegar uma vela e a segurou na mão dela. Que os caminhos fossem iluminados! 

Choramos, choramos, choramos...

As férias, a liberdade, a casa grande, a cidade pequena, a bicicleta, os cachorrinhos, os primos, as tias, a tapioca, a bruaca, o baião, a carne-de-sol, a paçoca artesanal, o riso farto, o jeito doce, os olhos verdes, o cabelo cinza, os vestidos floridos, a cadeira de balanço, os bordados, a máquina de costura enferrujada, a bíblia aberta, o terço rodando na mão...

Nunca fumou na vida. Quando muito, inalava uma vez ao dia a fumaça de seu fogão à lenha. Carregando ela comigo, numa visita de pneumologia, perguntei ao professor sobre a influência de fogão à lenha como fator de risco para câncer de pulmão. 

- Não. Para doença pulmonar obstrutiva crônica li um estudo, mas para câncer, não. 

Vovó não estava nos números.

terça-feira, 6 de março de 2018

Caminhos novos e sinalizados

Urge registrar, antes que me esqueça, antes que eu seja esquecido. Estas linhas são para aqueles que quiserem seguir um caminho como este que direi, ou para mim, quando voltar daqui há um século, caso ainda brilhe o olho ao ler sobre estes caminhos. 

Depois de batalhas cruéis contra a medicina oficial, venho encontrando autores que conduzem para um pensamento mais inteiro do ser humano. São eles Paracelso, Gerard Encausse (Papus), René Guenon (dissidente de Papus), Juan Alfredo Cesar Müller. Revelam-me:

  • Paracelso: a possibilidade de uma medicina vitalista e analógica, alquímica, espiritualista e teúrgica. 
  • Gerard Encausse: a necessidade de adicionar a visão sobre os múltiplos corpos sutis do ser humano, uma incipiente, mas urgente abordagem da fisiologia do espírito (ou perispírito, como queremos, os espíritas), a necessidade de resgatar os conhecimentos esotéricos do ocidente, ainda que toscamente, haja vista, astrologia, artes divinatórias, cabala. 
  • René Guenon (meu amigo-inimigo, já que abomina o espiritismo): o respeito pela tradição das grandes culturas, particularmente a hindu, a chinesa e a islâmica, em diálogo com o cristianismo, nosso tudo. Suas críticas ácidas contra o cientificismo, na sua pretensão totalitária. 
  • Juan Müller: psicólogo szondiano argentino, utilizador de homeopatia e astrologia na clínica diária. Vários relatos de contemporâneos apontaram seus êxitos em cura. O livro "Alquimia Moderna" traz descrições de casos que provam estes êxitos. Sua forma complexa de ver a realidade é a materialização de tudo que venho estudando - epistemologia, psicologia, homeopatia - o que me induziu a ter renovada paixão pela homeopatia, um desejo voraz pela astrologia e uma vontade de aprofundar os estudos dialógicos entre medicina e psicologia. 

 Alguns agravos de saúde me assustaram nesse último ano, induzindo-me à aceleração dos estudos destes temas. Os esforços não prestam culto à higiene do sono, e por estes dias pouco respeitam até mesmo o imperativo de repouso. Acabará acontecendo como Allan Kardec que, instado pelos Espíritos guias a alentecer o passo, desobedeceu, agilizando o degaste corpóreo, porém deixando legado incomensurável para a humanidade.

Não pretendo atingir as alturas de Kardec. Já me bastou muito tê-lo como mestre. Felicitar-me-ei, tão somente, em não perder mais uma encarnação, estando perdido no caminho das ciências. 

Pela exiguidade do tempo que me ameaça, quero minimamente deixar alguma viela pavimentada e sinalizada a fim de minha próxima personalidade reencarnante saber como continuar. 

Ah! Claro que os doutos riem de mim. Nenhum é meu amigo ou paga a alimentação de minha família. Sem açúcar e sem afeto, pouco me importam suas críticas. 

Meu currículo oficial não cresce. As revistas científicas destes tempos são guetos de reprodução de mesmices. Raramente há uma explosão. As redes sociais, impulsionadas pelos recursos da informática, servem mais para nos conectar com os pares e divulgar nossas ideias. É assim que, em breve, estarei fundando um grupo de estudos de medicina esotérica com três colegas cujo gabarito excedem o meu. Não me admiro, nestes tempos aquarianos, que o grupo cresça e se mova a tal ponto de deixar qualquer risco na história que, mais robustos que estas linhas, me ajudem a chamar a atenção quando o exercício do esquecimento das vidas passadas tiver turvado meus olhos além.