quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Seu Viriato fala com um Preto Velho

 Sou eu, Viriato. Falo aqui como quem escreve em um diário. Talvez este espaço o valha. 

Acordei cansado, mas ansioso. Esses tempos de pandemia desestruturaram minha família. Andei brigando mais com minhas filhas, falei alto com a esposa. Não sou de falar alto com ninguém. Senti-me manchado por ter feito isso. 

As dores do ombro pioraram. Quando começo a me movimentar, o sol melhora o corpo, aquece o ombro, aí dói menos. Os pensamentos estão confusos. Sentei para trabalhar e o dedo se arrastava pelo teclado. 

Vou ter uma consulta logo mais com o ortopedista. Espero que ele me passe algo que melhore essa dor. 

[A consulta com o ortopedista acontece. Foi uma consulta virtual]

Como foi rápido! Eu não tinha muito o que falar mesmo. É apenas um ombro, e ainda mais que é o ombro esquerdo. Vale menos ainda muito papo. 

Já pedi a medicação pelo aplicativo. Nossa! O entregador já chegou. 

- Obrigado!
- Se o senhor poder me avaliar positivamente, agradeço.
- Tudo bem!

O que custa dar um trocado para esse jovem. Ainda me lembro quando eu era da idade dele. Esse ombro não doía assim. Como é mesmo para tomar essa medicação. Ah! Ele disse que tinha de ser com estômago forrado, pois pode fazer úlcera. Deus me livre! Curo o ombro e abro um buraco na barriga! Não mesmo. Seguirei a prescrição. Se é que cura algo. Ele disse que se não funcionar ainda podemos nos valer das injeções. Tudo bem. Não espero mesmo que uma dor que já é minha companheira há tanto tempo saia assim de repente. 

Escrever me ajuda a organizar isso tudo tão confuso. 

Sobre minha ansiedade. Eu falei que havia acordado cansado, mas ansioso. É que no final da tarde vou conhecer um senhor que dizem deixar passar mensagens do além. Particularmente de um preto velho chamado Pai João. Eu nem sabia, mas meu avô participava de rituais assim. Desses de falar com espíritos. A miscigenação das gerações foi clareando nossas peles. Mas vovô era um negro sem qualquer diluição. Eu tinha uma conexão muito forte com ele. E agora, nesse momento medonho, me aparece essa oportunidade de falar com o velho preto do meu avô. Como será isso? O que será que ele tem a me dizer?

[A tarde vem e quase passa. Seu Viriato já está na mesa com o Preto Velho]

- Óia, cê pode ficá bem à vontade aqui, dotô. Tô aqui pá lhe ouvi. Ouvi suas dor, seus pesá, suas encrenca. In nomi de Xangô, salve nosso sinhô Jesus, salve nobreza santa, pode me falar.

(Estranho. Eu sou um homem estudado e venho ter com um tal João que não sabe nem o português direito)

- Pai João, a vida não tá fácil.
- Num tá pá ninguém, fio!
- Minha cabeça tá fora do lugar. Não consigo trabalhar. Tô estressado com a esposa, com as crianças.
- E o casamento tá disgastado, fí?
- Tá por um fio, Pai.
- Difíci cumpri a promessa do altá, das aliança, né mermo?
- Não era pra ser. A vida tava boa, mas o cotidiano e a mesma convivência tá destruindo a gente. 
- Eu te intendo. Amá quando tá tudo bem é fáci. Amá no mêi da tempestadi é difíci. Mas, amá foi aquilo que o nosso sinhô pediu pra fazer, e como o póbi apanhô por defender isso. Dizê que nós tudo é capaz de milagres de amô. Nesses tempo de crise, menino, o amô é moeda rara, tá caro. E basta só uma pacienciazinha pra garimpá ele bem aí no peito. 

(Por que diabos estou chorando? Essa simplicidade dele me toca. Ele fala simples, como quem já viveu muito. Parece meu avô. Se fosse outra pessoa, teria me enfurecido. Me coloca numa posição de menino. Mas, enxergando meu avô detrás dessa entidade, me sinto de novo aquele moleque. Nem consigo falar mais nada. Essa mensagem do amor difícil está em todo o evangelho, mas tem um brilho especial partindo daqui)

- Num se aveche. Se acalme. Eu já vi tanta coisa acontecê nesse mundo. E passô. Renovô. Cê deve tá precisando disso: renová. Tirá coisa velha do peito, da cabeça. Colocá ar novo. Vô lhe passá uns trabáio, que ocê vê com os homi da organização do templo como faz. Anote aí...

O Pai João então me manda para um lugar onde as pessoas dançavam e espalhavam bençãos sobre mim. Depois um fogo passava pelos vários pacientes - vou chamar de pacientes - como que a nos purificar. Dizeres estranhos como que evocações de forças cósmicas animavam os coordenadores dos rituais. Não me cobraram nada, não me obrigaram a nada, deixaram-me livre. Não exigiram minha crença nem minha pertença. Apenas ofereceram o que tinham para dar. 

Talvez seja isso. Estou me cobrando demais, e cobrando os outros. Tenho que me desapegar mais do mundo como eu quero que ele seja, e permitir que o mundo seja o somatório do que podemos ser, respeitosamente. E se eu sentar para ouvir minhas filhas como esse preto velho sentou para me ouvir, sem doutorado, mas com cuidado? Se eu tiver meu coração desperto e meu ouvido aberto para receber a fala da minha esposa como se fosse um ofício sagrado. O preto velho para me ouvir evocou forças divinas. É uma escuta sagrada. Talvez, quem sabe, buscando intimidade com esse sagrado no meu ouvido, toda essa confusão se relativize, e alguma ordem encarne de novo entre nós.

Valei-me! Onde está a dor no ombro? Passou.