quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Fechando um ciclo

Não foi por causa daquela noite em que vi o ápice da pandemia chegar no meu plantão. Em que intubei três pacientes consecutivos, com duas paradas irreversíveis, e duas paliações negociadas. Ainda que aquele dia tenha me feito chorar, após certa relutância em acessar meus sentimentos, chorar e gritar no meio do trânsito com gosto de morte na boca. Isso foi só a gota d'água. 

Convidaram-me para outras funções no sistema de saúde. A medicina de família, minha especialidade, há muito vinha sendo só teoria e discurso. É chegada a hora de colocá-la em prática. 

Urano passa por touro na casa que tem a força de escorpião. Soube disso depois de ver toda a confusão que já se instalava em mim. Revolução, transformação, acolher legados e heranças. 

O espólio de mamãe ainda tramita na burocracia dos cartórios. E só agora, a medicina de papai quer ter direitos de território na minha vida. Um terreno que havia comprado pra ser um retiro familiar, o estou passando pra frente. Os plantões, feito roupa envelhecida, não os quero mais. O conforto que me davam de um emprego certo, abdico-o. E o salto que dou para a vida é de fé. As promessas que me abraçam, seus braços ainda se escondem nas névoas do horizonte. E certa doença aninhada em mim vez ou outra me faz temer não chegar muito além, feito Moisés léguas antes da Palestina. Teria, então, desperdiçado a vida cujos sonhos apontavam para outra medicina, de quem eu seria um dos construtores da nova aurora. 

Logo mais assinarei a liberdade. Terei demorado muito? Sete anos é um tempo simbólico. Poderia eu me permitir um sabático, mas Saturno é exigente. Com sua mão sinistra, finca as esporas no meu Touro e me mete a trabalhar, ainda mais, enfrentando as feridas, mexendo nos incômodos.

Preparar-se para a morte, que é transformação. Ato contínuo, apontar para as estrelas do meu céu. Quem sabe não chego na fortaleza maior do caráter, enxergo enfim a humanidade como minha família, e aceito a sabedoria da velhice que me espera. São os primeiros anos de um novo setênio. Por Deus, como me sinto menino!