quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A comunidade arredia

Tivemos hoje grandes insights com a fala do médico do trabalho da empresa que visitamos. Vindo da saúde comunitária, com toda a teoria de vigilância em saúde dela, olha-se para aquele conjunto de relatórios, gráficos e planejamentos em torno da saúde dos funcionários com um desejo que na comunidade fosse também assim. 

Mostra-nos o médico da empresa três grandes calhamaços com gráficos, tabelas, análises dos processos de adoecimento da população que ele assiste. Falo-nos que tudo aquilo provoca ações de prevenção de agravos e promoção da saúde. Pela cultura daquela empresa, que busca deixar prosseguir empregado quem não tenha graves motivos para sair, ele acaba também sendo um médico que acompanha uma longa parte do ciclo de vida do trabalhador. 

Ele tem, ainda, um olhar tanto do todo da empresa como de fatores de risco setorizados, podendo assim particularizar medidas. Conta com algumas equipes ao seu redor para dar vazão às ações que ele achar necessário. 

Trabalho em equipe, mapeamento de riscos, planejamento de ações, visão do coletivo. Ora, isso é a menina dos olhos dos teóricos da atenção primária. Contudo, uma fala era recorrente no discurso desse médicos:

- Aqui, eu tenho controle sobre o cuidado do paciente. Posso pedir retorno e sei que ele vai vir. Na comunidade, eu lanço a demanda, mas o paciente se perde e nunca mais volta. 

A grande diferença entre uma fábrica e uma comunidade comum está exatamente aí: a rebeldia do real. É da natureza de toda profissão da saúde tentar organizar o caos. As pressões desestruturantes que existem ao nosso redor, a vitória delas é que determina o adoecimento e a morte. A vida é um contrafluxo rebelde à terceira lei da termodinâmica. Desde a primeva explosão a ciência entende que o destino é nos desorganizarmos. Esforçamo-nos para prolongar o tempo de isso não acontecer enfim.

A própria mitologia grega nos sugere esse conceito. No princípio era o caos. Houve uma briga entre os deuses. Venceu aquele que organizou tudo e dividiu o cosmos entre cada irmão, cada um cuidando da sua parte o mais divinamente possível. Contudo, a humanidade encarnou a ideia da que rompe o equilíbrio, ameaçando a ordem, qualidade de quem é mortal. Aqueles, diz a sabedoria grega, que se adequam à ordem do universo, descobrem sua imortalidade essencial. 

O que é a comunidade onde atua o médico de família? Nem é o caos, nem é o cosmos. É o caosmos. Quando formos estudar as neoplasias, os mecanismos de proteção que o organismo inventou contra a proliferação desmedida falam um pouco disso. Existe em nós, seres homeostáticos, uma tendência ao caos que chama a atividade de ordenação, e uma atividade de ordenação que provoca caos em algum lugar. Saímos de uma visão estática e linear do biológico para enxergá-lo em complexidade. 

Toquei nesse assunto para dizer que talvez não seja desejável ter a comunidade na mão. Quanto de liberdade deve ser sacrificada a fim de fazer caber nos olhos do médico todos os movimentos possíveis que vão contra a saúde? Valeria a pena sacrificar? Não estaríamos amputando o que faz do humano demasiadamente humano?

Vejo o ofício do médico do trabalho algo da ordem do fogo e da terra - combustão e solidez. O do médico de família, algo da ordem da água e do ar - flexibilidade e leveza. Claro que, como somos todos feitos destes quatro elementos, temos de empregar a energia de todos para o bom trabalho. Todavia, creio na preponderância de alguns em certos lugares. 

Mais na frente, lidaremos com as doenças que ferem a sexualidade humana. Haverá outro lugar em que haja mais fogo ou que nos mostre mais o quanto somos feitos de terra? Haverá outro lugar em que, nós profissionais, devamos ir com mais água nos gestos e mais ar na fala? De outro modo, quanto mais os profissionais da vigilância epidemiológica querem tratar a questão a fogo e terra - cauterizar e conter - mais as pessoas são água e ar, deslizam por entre os mecanismos de contenção, voam para longe, onde podem exercer sua intimidade em paz. 

Algo que os debates metafísicos não conseguiram chegar ao consenso: que felicidade é mais feliz, a determinada pelas leis ou a criada pelo espírito? Pergunta talvez errada. As duas dimensões são as faces irredutíveis da realidade. 


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