No exato momento do meu trabalho, estou lotado em três pontos extremos do absurdo da morte no Sistema Único de Saúde.
Há um lugar onde todas as pessoas tem acesso sem nenhuma restrição. Este lugar é a unidade de pronto-atendimento. Nele eu exerço a função de acolher o paciente grave que precisa de internação urgente e encaminhá-lo em tempo hábil. Neste lugar, vi isso ontem, um idoso possui a sua perna em auto-amputação, por não ter conseguido chegar ao único hospital que tem as especialidades que podem acolher sua demanda.
Eu estou trabalhando também neste tal hospital. Vi isso hoje: pessoas semeadas pelos corredores, moscas voando sobre seus rostos, acompanhantes trocando as fraldas dos idosos e as jogando, sujas de fezes, no chão. Macas altas, macas baixas, macas retidas das ambulâncias que aportam do interior, corpos tortos sobre elas.
- Comece por aqueles que estão há pelo menos um dia sem serem vistos, disse a colega.
Se aquele senhor fosse aceito por este hospital, sairia do lugar em que acotovela dezesseis pacientes entre poltronas de espera para um que se espalha por cem macas improvisadas pelo chão. "Os pacientes da radiologia" não são aqueles que estão internados em uma enfermaria com acompanhamento de radiologistas, mas os que que estão lotados no corredor em frente ao serviço de radiologia.
Dos que atendi hoje, chegando até mim mesmo apesar de todas as negativas que são dadas logo à porta do hospital, havia cânceres metastáticos, figados cirróticos em encefalopatas, acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos, e uma jovem que gritava, desde as seis da manhã, de duas em duas horas de dor por pedra nos rins - era uma da tarde. Esta jovem era a melhor deles. Um dos que fui obrigado a orientar com veemência que procurasse outro hospital, pois os exames laboratoriais estavam normais, era uma depressão grave que o médico do posto disse (sic) "não volte mais aqui que o seu caso é com psiquiatra". E que o psiquiatra da rede pública disse que "o hospital (psiquiátrico) não tem suporte para aceitar um paciente que deve apresentar cuidados clínicos".
Também começo a trabalhar na equipe de cuidados paliativos do hospital. Chamados para dar os pareceres de como conduzir os momentos finais destes pacientes, esta equipe de médicos dá nortes de controle de sintomas e, principalmente, convoca a família para esclarecer a terminalidade da vida de seus entes queridos. Participei de duas reuniões. A primeira havia revolta unânime com o descaso. A segunda uma tristeza absurda com o acaso. A primeira era um acidente vascular que talvez pudesse ter sido evitado se socorrido a tempo. A segunda, um carcinoma que quando se manifesta, já é tarde.
Cheguei em casa há pouco. Ainda tive energia para ler algum capítulo de o Evangelho Segundo o Espiritismo para uma palestra que terei de dar logo mais. Adormeci estudando. Mas, o sono foi atribulado. Aqueles rostos cadavéricos passavam a todo instante por mim. A cor da perna impregnava no meu rosto. E minha pele parecia cheia de nódulos grossos, duros, aderidos na alma.
Choro e ranger de dentes, dizia a imagem apocalíptica. Sim, ela está aqui.
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