Enviamos os alunos para o que seria sua primeira atividade de coleta de anamnese com pessoas reais, não em consultas simuladas. A anamnese tinha um propósito bem específico que era identificar os riscos a que estavam expostos os vários trabalhadores do campus. Dessa forma, afastava-se um pouco da anamnese habitual, de quando começamos a aprender esta arte, que visa a decifrar um enigma resgatando os passos da doença na fala da pessoa. Esta aqui já sabe o espectro de doenças e os riscos inerentes a cadeia de produção das mais diversas profissões.
Quando retornamos à sala para expor as histórias e comentá-las, alguns falaram sobre a dificuldade da abordagem de certos trabalhadores. Alguns não queriam parar o trabalho ou, pelo menos, não ser visto com o trabalho parado. Outros pareciam esconder os pormenores dos riscos já que estavam do lado do seu empregador. E os empregadores entrevistados pareciam sempre amenizar os próprios riscos, uma vez que é da natureza do empreendedorismo assumir os riscos na carne e seguir adiante, com a faca no dente.
Aqui encontrei outro tema que conecta as três zonas da medicina que abordamos neste semestre: a vontade de esconder.
Na saúde do trabalhador, esse segredo é historicamente guardado pelo medo da perda do emprego, no caso do empregado, ou pelo recalque do que se joga empreendedor no mercado. São as falas que buscam escamotear os riscos.
Ao contrário da imagem do sindicalista que sempre está com um megafone na boca e a exaltação nos gestos em indignação contra o que chama, pela categoria filosófica que assumiu, opressores burgueses, a maior parte dos trabalhadores fazem parte da massa que tem um senso de dever no peito a ser cumprido a qualquer custo. Aliás, é a imagem desse trabalhador, e não a do preguiçoso, que foi idolatrada na doutrina de Marx. E, se por força das pressões sociais, houve as revoltas proletárias, quando a maré social está mansa, e a economia cresce, o que se vê é, de fato, as virtudes de esforço e dever no coração dos construtores da sociedade. Quem nutre estas virtudes não quer se entregar às reclamações, particularmente alimentados pelo discurso sapiencial da bíblia que colore a ritualística domingueira. São cinco dias de trabalho, dois para gastar conosco e com os nossos, e uma hora para sagrar à Deus. Essa é a semana ritualística da maior parte dos trabalhadores. Não gastar tempo reclamando é um provérbio.
Quando o assunto toca as neoplasias, encontramos as pessoas que querem não bem esconder os riscos, mas sim a doença em si. Como que, por um encanto, não falar a fizesse inexistente. Novamente recorro ao simbólico-religioso em nós: se o mundo foi feito em um Fiat Lux, se o Verbo inicial se fez carne e fundou nossa civilização ocidental em vários aspectos, se ainda em toda missa o hoc est corpus do padre transforma pão em carne sagrada, bem que o calar poderia fazer as vezes de não provocar nada na matéria. Assim, o segredo na fala muitas vezes alimenta uma doença que, do contrário, teria sido diagnosticada a tempo para ser extirpada.
Por fim, nossa última etapa é entrar nos assuntos do sexo. Heráclito, o grego da realidade cambiante, dizia que não se pode olhar de frente nem o sol, nem a morte. André Comte-Sponville, o filósofo místico-materialista, acrescenta: nem o sexo.
Percebemos, quando vamos aprendendo a coletar histórias de sofrimento, que o sexo é campo minado. Ninguém fala das experiências sexuais com termos inocentes. Ou se tem metáfora para despistá-lo, ou lascívia para saboreá-lo, ou ainda ciência para esconder sua selvageria. Os lugares do sexo em nosso corpo são cobertos, nos chamados povos civilizados, duas vezes. Há uma riqueza de terminações nervosas em lugares especiais que, quando tocados, não é dor, nem calor, nem frio, nem pressão que se sente, mas prazer. Desde tempos imemoriais praticamo-lo na intimidade. Até mesmo os lugares do sexo parecem ter duplo véu. O médico que fala abertamente de sexo com seus paciente é porque já está senhor da situação, especialista que é. Todos os outros vão por arrodeios. E ainda os especialistas não atravessaram o véu por inteiro. A naturalidade, que não raro vem com a jocosidade, permite falar sobre sexo, mas não do sexo. Elevamos o assunto a uma superfície em que o ato é comentado quase como sem autoria, a fim de que qualquer pecado que o assunto deixe transparecer tenha vida própria sem qualquer sujeito para ser punido ou julgado. Quão difícil é, desse jeito, promover a almejada quebra da corrente de transmissão quando nos deparamos com um paciente-índice de uma infecção venérea.
São assim, trabalho, câncer e sexo, três zonas que, por motivos próprios, preferem não falar de si, e o quanto isso aprofunda ainda mais o processo de adoecimento é o que constatamos.
sábado, 24 de fevereiro de 2018
O rito que conduzo à faculdade de medicina
Os alunos da faculdade em que me formei médico criaram para mim um ritual. E quando falo em ritual, quero dizer com todo a força religiosa dele, ou quase.
Ritual é um gesto solene que é repetido por um profitente, acompanhado por seguidores, com uma ciclicidade que obedece certa lógica com o tempo astrológico. O gesto que se repete tem a ver com uma ação fundadora de um cosmos, inaugurado por um ser que assim sacralizamos (ou o reconhecemos como sagrado). O sagrado tem a ver com sacrifício, não porque o matamos, mas porque o elevamos ao patamar da eternidade (ou o reconhecemos como filho dela). Quis quase toda a história da humanidade que isso se desse com a morte do ser. Mas, no fundo, a morte não é necessária se não em termos simbólicos. Sempre é preciso que o ser que fundou o gesto primordial morra para o efêmero e renasça para o eterno. Aquele que fica responsável por reinaugurar o gesto a cada geração, por estar mexendo com o sagrado, é dito sacerdote. Assim é, por exemplo, a santa ceia de Cristo que antecede sua crucificação e até mesmo culmina nela. A morte de Cristo ilumina a ceia que a antecedeu tornando-a santa. Desde então, cristãos do mundo inteiro revivem a partilha do pão e do vinho semanalmente e, em um dia do ano, entram em um jejum simbólico de quarenta dias a fim de assimilar no espírito a mística partilha do corpo de Cristo dilacerado na cruz, vertendo seu sangue para cobrir a humanidade de seus pecados.
Esse ritual era o mais forte que tínhamos na civilização ocidental. Hoje está esvaziado de seu poder pela descrença nas realidades metafísicas que se instaurou na população em geral. O laboratório da ciência se tornou o altar em que as hipóteses se transubstanciam em verdade, aguardadas sequiosamente por um séquito de acadêmicos que se curvam em frente das evidências - que morrem a cada cinco anos, e cada vez em menos tempo. A mídia e as redes sociais, para grande parcela da população, se tornaram, de outro modo, o altar em que os boatos se transubstanciam em fatos, devoradas voluptuosamente pelos participantes dos ritos de assistir e postar - que morrem tão logo são postados. Quer dizer, outras metafísicas canibalizaram o ritual de Cristo, sem o devido sucesso de apaziguar os ânimos e melhorar as pessoas que este teve durante quase dois milênios.
Falava, então, do ritual que os meninos e meninas da faculdade de medicina fazem eu viver, re-viver, construir e re-construir quase todos os semestres, quando os recém-ingressos vivenciam a primeira semana de recepção.
O ritual consiste em eu narrar a minha história de derrota na faculdade durante quarenta minutos. O discurso é ponteado de graças, e vai mostrando o quanto eu, este médico relativamente bem-sucedido de uma década de profissão, sou igual a eles. Vou descrevendo o mesmo padrão de vontade de primeiros lugares, passando pelos mesmos professores de cursinho, com a mesma felicidade alardeada ao mundo, amparada calorosamente pelos pais. Depois vou falando de cada cena de frustração na faculdade. Aqui e ali falo de uma grande lição que aprendi e que quero que eles desde já tenham em mente. De todas elas, a principal: amigos. A principal antes da que culmina essa história: a relação entre mim e meu pai.
É quando conto da vontade de libertação, de firmar minha identidade separada da sombra daquele que pareceu ser sempre meu maior modelo. Não foi um modelo ruim, pelo contrário. Mas, era hora de eu ser Eu. Nesse momento, sinto que quase todos estão, enfim, identificados comigo. Já não sou eu quem falo, mas eles que falam em mim. É quando começo a descrever o mal-estar de papai quando falei querer sair da faculdade quase ao final dela. O processo de encontro autêntico com a medicina que enfim gostava de fazer: a medicina de família. O contraditório e dialético processo de querer me libertar do velho e, de certa forma, ter conseguido ao alcançar dizer para ele o quanto eu queria ser eu e não ele pela primeira vez. Todavia, de ter me encontrado, de fato, no campo da medicina onde ele atuou e mais amou. Desisto de desistir da faculdade. O tempo passa um pouco, entro no internato. O inesperado acontece.
Agora, nessa unidade mística entre mim e a plateia, todos nós somos conduzidos a aflição de ver meu pai pálido sobre um sofá na recepção do prédio. Todos nós tomamos meu pai nos braços, levamos ele ao pronto-socorro mais próximo, ultrapassando os sinais vermelhos, entregando seu corpo a uma cadeira de rodas, deixando que os médicos massageiem seu peito, que o coração havia parado. Alguns choram comigo. A maioria está em silêncio extático. Conto como só a partir daí a medicina nasceu em mim, como que ressuscitado aquele homem em meu corpo. No momento em que o enterrava, seus pacientes, da cidade que assistiu, vão contando grandes aventuras em que se embrenhou para os ajudar. A cidade, em peso, o enterrou. O padre vai à casa em que o velávamos fazer a missa de corpo presente, e papai nem católico era.
Eis porque acho que essa história deixa vontade de a ouvir de novo e mais uma vez: é porque refaz o drama de Cristo, o fundador de nossa civilização ocidental. De uma forma singularmente simbólica. Ela segue a mesma estrutura narrativa dos evangelhos. Apresento-me como partícipe de uma linhagem sagrada que me faz parente de todos aqueles que me ouvem. Vou me identificando com os aflitos de toda ordem, aqueles que temem serem devorados por uma via-crucis de recuperações ou reprovações. Apresento a minha morte para meu pai, e logo depois a morte de meu pai para mim, para, então, falar como meu pai ressurgiu em mim, me tornando mais eu do que nunca.
Não é uma blasfêmia esta comparação. Os grandes monges da idade média tinham em mente que a vida autêntica era aquela que imitava a do Cristo. Os grandes místicos entendiam o quanto a vida do Cristo era um oceano em que o caudal de nossa história desaguava. Nascer no opróbrio, ser amado por muitos, enfrentar o deserto, ser içado à cruz, ressuscitar ao terceiro dia. Uma grande vida percorre estes caminhos, muitas vezes percorre amiúde. São vários nascimentos em meios indignos, vários amores, desertos, cruzes e ressurreições. Claro, que um exemplo menor destes não tem o poder de fundar uma civilização, mas ao menos acalmar um pouco a angústia de neófitos corações, deve ter, senão, por que me chamar de novo e mais uma vez?
Ritual é um gesto solene que é repetido por um profitente, acompanhado por seguidores, com uma ciclicidade que obedece certa lógica com o tempo astrológico. O gesto que se repete tem a ver com uma ação fundadora de um cosmos, inaugurado por um ser que assim sacralizamos (ou o reconhecemos como sagrado). O sagrado tem a ver com sacrifício, não porque o matamos, mas porque o elevamos ao patamar da eternidade (ou o reconhecemos como filho dela). Quis quase toda a história da humanidade que isso se desse com a morte do ser. Mas, no fundo, a morte não é necessária se não em termos simbólicos. Sempre é preciso que o ser que fundou o gesto primordial morra para o efêmero e renasça para o eterno. Aquele que fica responsável por reinaugurar o gesto a cada geração, por estar mexendo com o sagrado, é dito sacerdote. Assim é, por exemplo, a santa ceia de Cristo que antecede sua crucificação e até mesmo culmina nela. A morte de Cristo ilumina a ceia que a antecedeu tornando-a santa. Desde então, cristãos do mundo inteiro revivem a partilha do pão e do vinho semanalmente e, em um dia do ano, entram em um jejum simbólico de quarenta dias a fim de assimilar no espírito a mística partilha do corpo de Cristo dilacerado na cruz, vertendo seu sangue para cobrir a humanidade de seus pecados.
Esse ritual era o mais forte que tínhamos na civilização ocidental. Hoje está esvaziado de seu poder pela descrença nas realidades metafísicas que se instaurou na população em geral. O laboratório da ciência se tornou o altar em que as hipóteses se transubstanciam em verdade, aguardadas sequiosamente por um séquito de acadêmicos que se curvam em frente das evidências - que morrem a cada cinco anos, e cada vez em menos tempo. A mídia e as redes sociais, para grande parcela da população, se tornaram, de outro modo, o altar em que os boatos se transubstanciam em fatos, devoradas voluptuosamente pelos participantes dos ritos de assistir e postar - que morrem tão logo são postados. Quer dizer, outras metafísicas canibalizaram o ritual de Cristo, sem o devido sucesso de apaziguar os ânimos e melhorar as pessoas que este teve durante quase dois milênios.
Falava, então, do ritual que os meninos e meninas da faculdade de medicina fazem eu viver, re-viver, construir e re-construir quase todos os semestres, quando os recém-ingressos vivenciam a primeira semana de recepção.
O ritual consiste em eu narrar a minha história de derrota na faculdade durante quarenta minutos. O discurso é ponteado de graças, e vai mostrando o quanto eu, este médico relativamente bem-sucedido de uma década de profissão, sou igual a eles. Vou descrevendo o mesmo padrão de vontade de primeiros lugares, passando pelos mesmos professores de cursinho, com a mesma felicidade alardeada ao mundo, amparada calorosamente pelos pais. Depois vou falando de cada cena de frustração na faculdade. Aqui e ali falo de uma grande lição que aprendi e que quero que eles desde já tenham em mente. De todas elas, a principal: amigos. A principal antes da que culmina essa história: a relação entre mim e meu pai.
É quando conto da vontade de libertação, de firmar minha identidade separada da sombra daquele que pareceu ser sempre meu maior modelo. Não foi um modelo ruim, pelo contrário. Mas, era hora de eu ser Eu. Nesse momento, sinto que quase todos estão, enfim, identificados comigo. Já não sou eu quem falo, mas eles que falam em mim. É quando começo a descrever o mal-estar de papai quando falei querer sair da faculdade quase ao final dela. O processo de encontro autêntico com a medicina que enfim gostava de fazer: a medicina de família. O contraditório e dialético processo de querer me libertar do velho e, de certa forma, ter conseguido ao alcançar dizer para ele o quanto eu queria ser eu e não ele pela primeira vez. Todavia, de ter me encontrado, de fato, no campo da medicina onde ele atuou e mais amou. Desisto de desistir da faculdade. O tempo passa um pouco, entro no internato. O inesperado acontece.
Agora, nessa unidade mística entre mim e a plateia, todos nós somos conduzidos a aflição de ver meu pai pálido sobre um sofá na recepção do prédio. Todos nós tomamos meu pai nos braços, levamos ele ao pronto-socorro mais próximo, ultrapassando os sinais vermelhos, entregando seu corpo a uma cadeira de rodas, deixando que os médicos massageiem seu peito, que o coração havia parado. Alguns choram comigo. A maioria está em silêncio extático. Conto como só a partir daí a medicina nasceu em mim, como que ressuscitado aquele homem em meu corpo. No momento em que o enterrava, seus pacientes, da cidade que assistiu, vão contando grandes aventuras em que se embrenhou para os ajudar. A cidade, em peso, o enterrou. O padre vai à casa em que o velávamos fazer a missa de corpo presente, e papai nem católico era.
Eis porque acho que essa história deixa vontade de a ouvir de novo e mais uma vez: é porque refaz o drama de Cristo, o fundador de nossa civilização ocidental. De uma forma singularmente simbólica. Ela segue a mesma estrutura narrativa dos evangelhos. Apresento-me como partícipe de uma linhagem sagrada que me faz parente de todos aqueles que me ouvem. Vou me identificando com os aflitos de toda ordem, aqueles que temem serem devorados por uma via-crucis de recuperações ou reprovações. Apresento a minha morte para meu pai, e logo depois a morte de meu pai para mim, para, então, falar como meu pai ressurgiu em mim, me tornando mais eu do que nunca.
Não é uma blasfêmia esta comparação. Os grandes monges da idade média tinham em mente que a vida autêntica era aquela que imitava a do Cristo. Os grandes místicos entendiam o quanto a vida do Cristo era um oceano em que o caudal de nossa história desaguava. Nascer no opróbrio, ser amado por muitos, enfrentar o deserto, ser içado à cruz, ressuscitar ao terceiro dia. Uma grande vida percorre estes caminhos, muitas vezes percorre amiúde. São vários nascimentos em meios indignos, vários amores, desertos, cruzes e ressurreições. Claro, que um exemplo menor destes não tem o poder de fundar uma civilização, mas ao menos acalmar um pouco a angústia de neófitos corações, deve ter, senão, por que me chamar de novo e mais uma vez?
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Trabalhar-se
Houve uma discussão que ficou pendurada lá quando tentávamos definir trabalho, e ela me é cara, por isso a retomo.
Trabalho pode ser individual?
Há um símbolo maçônico, chamado o jovem aprendiz, que mostra o corpo de um homem "preso" em uma pedra bruta. Este homem vai tentando "se libertar" da pedra com martelo e cinzel. Quer dizer, não é bem assim o símbolo...
O que está havendo ali é a autolapidação do homem. Ele era todo pedra bruta. O exercício maçônico de toda uma vida é se trabalhar para se transformar em um homem de verdade, inteiro, honesto, cumpridor do seu dever, do seu ofício, ajudante da comunidade.
Devemos olhar o trabalho por este ângulo, sempre. Trabalho é algo que dignifica o homem. Johann Wolfgang von Goethe, icônico poeta alemão, achava que sem o trabalho não seria possível a maturidade.
Ele nos dá dinheiro? É bom. Ajuda a pagar as contas? Que bom! Nos permite o lazer? Tanto melhor. Contudo, o que há de maior no trabalho é: nos torna homens e mulheres artífices de nós mesmos e da sociedade. Não ter que ser um peso morto para alguém, mas uma obra de arte dinâmica que ajuda o coletivo a crescer.
É triste quando as condições sociais não permitem essa realização, quando as taxas de desemprego aumentam e devoram os que tem fome e sede de trabalhar. É triste quando o trabalho é escravo, gerador de inúmeras doenças.
Contudo, há essa dimensão do trabalho que é sutil, discreta, secreta, alquímica, que é a de transmutar a alma do ferro ao ouro. Epicteto, filósofo estóico, foi escravo, porém assumiu aquilo com tamanha bravura que o seu nome é reverenciado vinte séculos após. Quem era seu dono, já que ele era escravo? Alguém sabe? Quem era o dono dele? Ele mesmo.
Trabalho pode ser individual?
Há um símbolo maçônico, chamado o jovem aprendiz, que mostra o corpo de um homem "preso" em uma pedra bruta. Este homem vai tentando "se libertar" da pedra com martelo e cinzel. Quer dizer, não é bem assim o símbolo...
O que está havendo ali é a autolapidação do homem. Ele era todo pedra bruta. O exercício maçônico de toda uma vida é se trabalhar para se transformar em um homem de verdade, inteiro, honesto, cumpridor do seu dever, do seu ofício, ajudante da comunidade.
Devemos olhar o trabalho por este ângulo, sempre. Trabalho é algo que dignifica o homem. Johann Wolfgang von Goethe, icônico poeta alemão, achava que sem o trabalho não seria possível a maturidade.
Ele nos dá dinheiro? É bom. Ajuda a pagar as contas? Que bom! Nos permite o lazer? Tanto melhor. Contudo, o que há de maior no trabalho é: nos torna homens e mulheres artífices de nós mesmos e da sociedade. Não ter que ser um peso morto para alguém, mas uma obra de arte dinâmica que ajuda o coletivo a crescer.
É triste quando as condições sociais não permitem essa realização, quando as taxas de desemprego aumentam e devoram os que tem fome e sede de trabalhar. É triste quando o trabalho é escravo, gerador de inúmeras doenças.
Contudo, há essa dimensão do trabalho que é sutil, discreta, secreta, alquímica, que é a de transmutar a alma do ferro ao ouro. Epicteto, filósofo estóico, foi escravo, porém assumiu aquilo com tamanha bravura que o seu nome é reverenciado vinte séculos após. Quem era seu dono, já que ele era escravo? Alguém sabe? Quem era o dono dele? Ele mesmo.
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018
Trabalho: fundamentos e adoecimentos
Nosso professor sociólogo Danilo Pinheiro conduziu o pensamento dos alunos na busca da essência do que seria trabalho humano. Algo que pudesse se desprender do que era particular dos momentos históricos e chegar no mínimo denominador de onde poderíamos partir para entendê-lo.
Das incitações e diálogos restaram estas seis palavras: Coletivo, Energia, Técnica, Conhecimento, Ambiente e Transformação.
O primeiro desafio seria construir uma frase com todas estas palavras que expressasse um juízo sobre o que é o trabalho humano. Vou ousar uma síntese:
- O investimento da própria energia, com o emprego de certo conhecimento, movimentando e sendo movimentado por uma técnica específica em relação ao propósito almejado, influenciado pelo ambiente a fim de transformá-lo. Uma atividade que, por mais individual que pareça, se insere no coletivo do começo ao fim: dele a ação humana se descola, para ele retorna.
O adoecimento pode perturbar cada dessas partes. E a ideia da saúde do trabalhador é enxergar os fatores de risco originados do próprio trabalho que podem provocar agravos nestes campos.
Quando me ensinaram sobre saúde do trabalhador à faculdade, lembro-me apenas do ambiente, dos mapas de risco. Mas, depois desta síntese do professor Danilo, todas essas nuances se deram as mãos.
Das incitações e diálogos restaram estas seis palavras: Coletivo, Energia, Técnica, Conhecimento, Ambiente e Transformação.
O primeiro desafio seria construir uma frase com todas estas palavras que expressasse um juízo sobre o que é o trabalho humano. Vou ousar uma síntese:
- O investimento da própria energia, com o emprego de certo conhecimento, movimentando e sendo movimentado por uma técnica específica em relação ao propósito almejado, influenciado pelo ambiente a fim de transformá-lo. Uma atividade que, por mais individual que pareça, se insere no coletivo do começo ao fim: dele a ação humana se descola, para ele retorna.
O adoecimento pode perturbar cada dessas partes. E a ideia da saúde do trabalhador é enxergar os fatores de risco originados do próprio trabalho que podem provocar agravos nestes campos.
- A energia: os mais diversos transtornos de humor, que causam sintomas negativos como anedonia, isolamento social, hipersonia.
- O conhecimento: os transtornos de humor, mas também os que ferem diretamente a forma como inteligimos a realidade, nossa percepção, as psicoses.
- A técnica: os transtornos que ferem nossos músculos, debilitam nossas articulações e ossos, o campo de atuação dos reumatologistas e ortopedistas.
- O ambiente: como o ambiente pode ser desgastante ou perigoso, provocando posturas e gestos cujo acúmulo ou intensidade abala o equilíbrio deste ou daquele sistema corpóreo.
- O coletivo: passamos a pensar mais, aqui, na grande cultura que, em massa, nos leva a formas de trabalhar adoecedoras, o mal-estar e as relações espúrias de trabalho de toda uma civilização.
Quando me ensinaram sobre saúde do trabalhador à faculdade, lembro-me apenas do ambiente, dos mapas de risco. Mas, depois desta síntese do professor Danilo, todas essas nuances se deram as mãos.
Entendendo a astrologia da vida
Estamos falando todo tempo destas três forças vitais: sexo, trabalho e morte. Sim, morte é uma força vital, veremos porque.
Na astrologia, dividem-se os signos em três grupos que são as modalidades cardinal, fixo e mutável. Diz-se que são as três energias moventes dos seres: a que gera o impulso inicial, a que mantém e a que faz mudar.
Acho que podemos enxergar, sem grandes prejuízos, sexo, trabalho e morte com este molde. Sexo compreende as forças cardinais, trabalho, as fixas, morte, as mutáveis. Claro que o sexo pode ajudar a manter um relacionamento, e sem paixão, pouca coisa sobrevive. O sexo pode ser destrutivo, também, e como pode! Os românticos sabem disso. Assim como há trabalho para se iniciar algo, e sem a morte do desnecessário é impossível estabilizar um empreendimento.
Veja que não falei que a morte é o fim. Nas modalidades astrológicas não se fala em fim, mas em mudança. Ora, da nossa visão geocêntrica, de onde a astrologia se originou, que é uma mera questão de perspectiva, mas que, todavia, não deve ser jogada fora, o universo que circunda a Terra não morre. Esteve antes de nós e permanecerá. De tal modo que não há uma energia de morte, mas de mudança. A morte, portanto, pode perfeitamente ser encarada como a necessidade da mudança, do fechamento de ciclos, do término de uma obra, para o início de outra.
Aqui vai mais um contributo para encarar estas três questões dentro de um quadro unitário lógico:
Na astrologia, dividem-se os signos em três grupos que são as modalidades cardinal, fixo e mutável. Diz-se que são as três energias moventes dos seres: a que gera o impulso inicial, a que mantém e a que faz mudar.
Acho que podemos enxergar, sem grandes prejuízos, sexo, trabalho e morte com este molde. Sexo compreende as forças cardinais, trabalho, as fixas, morte, as mutáveis. Claro que o sexo pode ajudar a manter um relacionamento, e sem paixão, pouca coisa sobrevive. O sexo pode ser destrutivo, também, e como pode! Os românticos sabem disso. Assim como há trabalho para se iniciar algo, e sem a morte do desnecessário é impossível estabilizar um empreendimento.
Veja que não falei que a morte é o fim. Nas modalidades astrológicas não se fala em fim, mas em mudança. Ora, da nossa visão geocêntrica, de onde a astrologia se originou, que é uma mera questão de perspectiva, mas que, todavia, não deve ser jogada fora, o universo que circunda a Terra não morre. Esteve antes de nós e permanecerá. De tal modo que não há uma energia de morte, mas de mudança. A morte, portanto, pode perfeitamente ser encarada como a necessidade da mudança, do fechamento de ciclos, do término de uma obra, para o início de outra.
Aqui vai mais um contributo para encarar estas três questões dentro de um quadro unitário lógico:
- Sexo: a força que dá vida aos seres;
- Trabalho: a força que mantém a vida dos seres, a própria vida em perpétua re-construção;
- Morte: a força que modela a vida, enriquecendo-a, lapidando-a, embelezando-a, pois.
A comunidade arredia
Tivemos hoje grandes insights com a fala do médico do trabalho da empresa que visitamos. Vindo da saúde comunitária, com toda a teoria de vigilância em saúde dela, olha-se para aquele conjunto de relatórios, gráficos e planejamentos em torno da saúde dos funcionários com um desejo que na comunidade fosse também assim.
Mostra-nos o médico da empresa três grandes calhamaços com gráficos, tabelas, análises dos processos de adoecimento da população que ele assiste. Falo-nos que tudo aquilo provoca ações de prevenção de agravos e promoção da saúde. Pela cultura daquela empresa, que busca deixar prosseguir empregado quem não tenha graves motivos para sair, ele acaba também sendo um médico que acompanha uma longa parte do ciclo de vida do trabalhador.
Ele tem, ainda, um olhar tanto do todo da empresa como de fatores de risco setorizados, podendo assim particularizar medidas. Conta com algumas equipes ao seu redor para dar vazão às ações que ele achar necessário.
Trabalho em equipe, mapeamento de riscos, planejamento de ações, visão do coletivo. Ora, isso é a menina dos olhos dos teóricos da atenção primária. Contudo, uma fala era recorrente no discurso desse médicos:
- Aqui, eu tenho controle sobre o cuidado do paciente. Posso pedir retorno e sei que ele vai vir. Na comunidade, eu lanço a demanda, mas o paciente se perde e nunca mais volta.
A grande diferença entre uma fábrica e uma comunidade comum está exatamente aí: a rebeldia do real. É da natureza de toda profissão da saúde tentar organizar o caos. As pressões desestruturantes que existem ao nosso redor, a vitória delas é que determina o adoecimento e a morte. A vida é um contrafluxo rebelde à terceira lei da termodinâmica. Desde a primeva explosão a ciência entende que o destino é nos desorganizarmos. Esforçamo-nos para prolongar o tempo de isso não acontecer enfim.
A própria mitologia grega nos sugere esse conceito. No princípio era o caos. Houve uma briga entre os deuses. Venceu aquele que organizou tudo e dividiu o cosmos entre cada irmão, cada um cuidando da sua parte o mais divinamente possível. Contudo, a humanidade encarnou a ideia da que rompe o equilíbrio, ameaçando a ordem, qualidade de quem é mortal. Aqueles, diz a sabedoria grega, que se adequam à ordem do universo, descobrem sua imortalidade essencial.
O que é a comunidade onde atua o médico de família? Nem é o caos, nem é o cosmos. É o caosmos. Quando formos estudar as neoplasias, os mecanismos de proteção que o organismo inventou contra a proliferação desmedida falam um pouco disso. Existe em nós, seres homeostáticos, uma tendência ao caos que chama a atividade de ordenação, e uma atividade de ordenação que provoca caos em algum lugar. Saímos de uma visão estática e linear do biológico para enxergá-lo em complexidade.
Toquei nesse assunto para dizer que talvez não seja desejável ter a comunidade na mão. Quanto de liberdade deve ser sacrificada a fim de fazer caber nos olhos do médico todos os movimentos possíveis que vão contra a saúde? Valeria a pena sacrificar? Não estaríamos amputando o que faz do humano demasiadamente humano?
Vejo o ofício do médico do trabalho algo da ordem do fogo e da terra - combustão e solidez. O do médico de família, algo da ordem da água e do ar - flexibilidade e leveza. Claro que, como somos todos feitos destes quatro elementos, temos de empregar a energia de todos para o bom trabalho. Todavia, creio na preponderância de alguns em certos lugares.
Mais na frente, lidaremos com as doenças que ferem a sexualidade humana. Haverá outro lugar em que haja mais fogo ou que nos mostre mais o quanto somos feitos de terra? Haverá outro lugar em que, nós profissionais, devamos ir com mais água nos gestos e mais ar na fala? De outro modo, quanto mais os profissionais da vigilância epidemiológica querem tratar a questão a fogo e terra - cauterizar e conter - mais as pessoas são água e ar, deslizam por entre os mecanismos de contenção, voam para longe, onde podem exercer sua intimidade em paz.
Algo que os debates metafísicos não conseguiram chegar ao consenso: que felicidade é mais feliz, a determinada pelas leis ou a criada pelo espírito? Pergunta talvez errada. As duas dimensões são as faces irredutíveis da realidade.
Mostra-nos o médico da empresa três grandes calhamaços com gráficos, tabelas, análises dos processos de adoecimento da população que ele assiste. Falo-nos que tudo aquilo provoca ações de prevenção de agravos e promoção da saúde. Pela cultura daquela empresa, que busca deixar prosseguir empregado quem não tenha graves motivos para sair, ele acaba também sendo um médico que acompanha uma longa parte do ciclo de vida do trabalhador.
Ele tem, ainda, um olhar tanto do todo da empresa como de fatores de risco setorizados, podendo assim particularizar medidas. Conta com algumas equipes ao seu redor para dar vazão às ações que ele achar necessário.
Trabalho em equipe, mapeamento de riscos, planejamento de ações, visão do coletivo. Ora, isso é a menina dos olhos dos teóricos da atenção primária. Contudo, uma fala era recorrente no discurso desse médicos:
- Aqui, eu tenho controle sobre o cuidado do paciente. Posso pedir retorno e sei que ele vai vir. Na comunidade, eu lanço a demanda, mas o paciente se perde e nunca mais volta.
A grande diferença entre uma fábrica e uma comunidade comum está exatamente aí: a rebeldia do real. É da natureza de toda profissão da saúde tentar organizar o caos. As pressões desestruturantes que existem ao nosso redor, a vitória delas é que determina o adoecimento e a morte. A vida é um contrafluxo rebelde à terceira lei da termodinâmica. Desde a primeva explosão a ciência entende que o destino é nos desorganizarmos. Esforçamo-nos para prolongar o tempo de isso não acontecer enfim.
A própria mitologia grega nos sugere esse conceito. No princípio era o caos. Houve uma briga entre os deuses. Venceu aquele que organizou tudo e dividiu o cosmos entre cada irmão, cada um cuidando da sua parte o mais divinamente possível. Contudo, a humanidade encarnou a ideia da que rompe o equilíbrio, ameaçando a ordem, qualidade de quem é mortal. Aqueles, diz a sabedoria grega, que se adequam à ordem do universo, descobrem sua imortalidade essencial.
O que é a comunidade onde atua o médico de família? Nem é o caos, nem é o cosmos. É o caosmos. Quando formos estudar as neoplasias, os mecanismos de proteção que o organismo inventou contra a proliferação desmedida falam um pouco disso. Existe em nós, seres homeostáticos, uma tendência ao caos que chama a atividade de ordenação, e uma atividade de ordenação que provoca caos em algum lugar. Saímos de uma visão estática e linear do biológico para enxergá-lo em complexidade.
Toquei nesse assunto para dizer que talvez não seja desejável ter a comunidade na mão. Quanto de liberdade deve ser sacrificada a fim de fazer caber nos olhos do médico todos os movimentos possíveis que vão contra a saúde? Valeria a pena sacrificar? Não estaríamos amputando o que faz do humano demasiadamente humano?
Vejo o ofício do médico do trabalho algo da ordem do fogo e da terra - combustão e solidez. O do médico de família, algo da ordem da água e do ar - flexibilidade e leveza. Claro que, como somos todos feitos destes quatro elementos, temos de empregar a energia de todos para o bom trabalho. Todavia, creio na preponderância de alguns em certos lugares.
Mais na frente, lidaremos com as doenças que ferem a sexualidade humana. Haverá outro lugar em que haja mais fogo ou que nos mostre mais o quanto somos feitos de terra? Haverá outro lugar em que, nós profissionais, devamos ir com mais água nos gestos e mais ar na fala? De outro modo, quanto mais os profissionais da vigilância epidemiológica querem tratar a questão a fogo e terra - cauterizar e conter - mais as pessoas são água e ar, deslizam por entre os mecanismos de contenção, voam para longe, onde podem exercer sua intimidade em paz.
Algo que os debates metafísicos não conseguiram chegar ao consenso: que felicidade é mais feliz, a determinada pelas leis ou a criada pelo espírito? Pergunta talvez errada. As duas dimensões são as faces irredutíveis da realidade.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
Carta ao meu amigo hoje interno de medicina
Querido,
Você me desabafa que passa mais tempo com as folhas que com as pessoas. Não foi para isso que passou quatro anos de faculdade, eu sei. De manhã é saber como os internados estão, o resto do dia é preencher prontuários e participar de discussões, ao final é ir informar a conduta médica para os interessados.
Quando você chegar na saúde comunitária, vai ver que boa parte do nosso tempo é dispensando receitas para os que batem à porta. Quase nunca entrar na comunidade, ainda mais nestes tempos de violência que assombram a cidade. Acabamos passando mais tempo com as folhas que com as pessoas, também.
Penso, todavia, que devamos enfrentar essa situação de peito aberto. Tenho para mim que a formação médica, custosa que pareça, é porque não tem um objetivo racional ao final, não desta racionalidade moderna que o homem de gênio se gaba. Ela é, sempre foi e nunca deixou de ser, mesmo a contragosto, da ordem da magia.
Em certa comunidade oriental, salvo engano Zen, um dos descendentes veio parar por estas bandas eurocêntricas e teve uma visão da deusa do lugar de origem. Ela era filha do fogo. Esse arrebatamento o fez crer que poderia representar a deusa entre os homens. Voltou para sua comunidade primordial e apresentou suas pretensões. Os sacerdotes do lugar deixaram-no passar noites inteiras nos cantos mais gelados, derramando sobre ele baldes de água. Se ele era realmente protegido da filha do fogo, que provasse! E sobreviveu. Voltou com a fala mansa e ígnea para motivar os transeuntes aflitos dos caminhos por onde passava.
Entende onde quero chegar? Tenho para mim que essa nossa pretensão de querer uma medicina "humanizada", como dizem por aí, deve sofrer a prova da desumanização extrema, da mecanização, da negação do corpo e dos sentimentos. É o que tentam fazer por todos os lados as instituições por onde passamos. Sobreviveremos ou morreremos de frio?
Com um pouco mais de tempo na estrada que você, se eu sobreviver, sentindo o deus do Encontro enfim tomar o corpo, vou te contar como é essa mística de cuidar das pessoas pelo gesto, pelo olhar, pelo toque terapêutico dos xamãs. Por ora, prescrevo e instilo veneno nas veias, escravizam-me papéis. Algum dia, queira Deus, liberto desse jugo, espalhe mais calma, mais conforto, com menos instrumentos entre mim e o outro. O ápice do encontro!
Você me desabafa que passa mais tempo com as folhas que com as pessoas. Não foi para isso que passou quatro anos de faculdade, eu sei. De manhã é saber como os internados estão, o resto do dia é preencher prontuários e participar de discussões, ao final é ir informar a conduta médica para os interessados.
Quando você chegar na saúde comunitária, vai ver que boa parte do nosso tempo é dispensando receitas para os que batem à porta. Quase nunca entrar na comunidade, ainda mais nestes tempos de violência que assombram a cidade. Acabamos passando mais tempo com as folhas que com as pessoas, também.
Penso, todavia, que devamos enfrentar essa situação de peito aberto. Tenho para mim que a formação médica, custosa que pareça, é porque não tem um objetivo racional ao final, não desta racionalidade moderna que o homem de gênio se gaba. Ela é, sempre foi e nunca deixou de ser, mesmo a contragosto, da ordem da magia.
Em certa comunidade oriental, salvo engano Zen, um dos descendentes veio parar por estas bandas eurocêntricas e teve uma visão da deusa do lugar de origem. Ela era filha do fogo. Esse arrebatamento o fez crer que poderia representar a deusa entre os homens. Voltou para sua comunidade primordial e apresentou suas pretensões. Os sacerdotes do lugar deixaram-no passar noites inteiras nos cantos mais gelados, derramando sobre ele baldes de água. Se ele era realmente protegido da filha do fogo, que provasse! E sobreviveu. Voltou com a fala mansa e ígnea para motivar os transeuntes aflitos dos caminhos por onde passava.
Entende onde quero chegar? Tenho para mim que essa nossa pretensão de querer uma medicina "humanizada", como dizem por aí, deve sofrer a prova da desumanização extrema, da mecanização, da negação do corpo e dos sentimentos. É o que tentam fazer por todos os lados as instituições por onde passamos. Sobreviveremos ou morreremos de frio?
Com um pouco mais de tempo na estrada que você, se eu sobreviver, sentindo o deus do Encontro enfim tomar o corpo, vou te contar como é essa mística de cuidar das pessoas pelo gesto, pelo olhar, pelo toque terapêutico dos xamãs. Por ora, prescrevo e instilo veneno nas veias, escravizam-me papéis. Algum dia, queira Deus, liberto desse jugo, espalhe mais calma, mais conforto, com menos instrumentos entre mim e o outro. O ápice do encontro!
Trabalho, morte e sexo na medicina
Ao quarto semestre da faculdade de medicina, nesta faculdade em que agora estou, falamos sobre saúde do trabalhador, abordagem da pessoa em vulnerabilidade extrema (portando neoplasia) e enfrentamento das infecções sexualmente transmissíveis.
Meu esforço como professor desse módulo, entre outros, é entender como estes assuntos dialogam entre si. Não tive contato ainda com os fundadores desta parte do currículo para saber o que tinham em mente. O mistério, de outro modo, me agrada.
A primeira ideia que tive para estabelecer a unidade do conhecimento na unidade da consciência foi enxergar que esses temas são os que nos arremessam diretamente nas potências da nossa personalidade adulta. Até então estávamos, nós adolescentes antes da faculdade, buscando o amor dos pais e dos amigos, ou ainda buscando se autoafirmar nos grupos de convivência. Agora iremos nos deparar com o círculo do dever (trabalho), do enfrentamento do medo da morte (neoplasia)* e da busca de exercer a consecução de nossos desejos com uma atitude sã, precavendo-se dos arroubos cegos de nossa libido.
No último encontro quis enxergar essa unidade também na forma como lidamos com esses assuntos na medicina. São lugares em que o exercício do cuidado sobre a saúde humana deve acontecer, de preferência, com um olhar sobre a comunidade, os riscos a que ela está exposta, a prevenção dos agravos que tendem a acontecer.
Quem é esta comunidade? Semestres passados entramos na comunidade lato sensu, aquela que residia do lado da unidade de saúde. Neste semestre, temos algumas comunidades quase específicas:
1. Aqueles que já podem investir na vida com sua força de trabalho;
2. Aqueles que já podem investir na vida com o exercício de sua sexualidade;
3. Aqueles que estão sujeitos aos riscos de degeneração celular que a vida trás para todos, independente se estão preparados para trabalhar ou fazer sexo.
Eu disse "quase específico", porque os dois primeiros tópicos abrangem muita gente, e o último arrasta a todos.
A parte chata da medicina para mim, e acho que para os alunos também, é ter que enxergar a vida dessas comunidades através de protocolos, questionários semi-estruturados, normas, abordagens sindrômicas. A parte boa da medicina é ter contato com essas comunidades. Nossa vida se abre, a consciência se amplia, a casa de onde viemos fica tão pequena, o mundo nos acena.
Desejo olhos de ver e mãos de tocar para todos estes que se iniciam no vasto quarto semestre desta faculdade. Haverá espaço na alma para tantos cenários de vida e dor? Há, quando não é pequena.
Meu esforço como professor desse módulo, entre outros, é entender como estes assuntos dialogam entre si. Não tive contato ainda com os fundadores desta parte do currículo para saber o que tinham em mente. O mistério, de outro modo, me agrada.
A primeira ideia que tive para estabelecer a unidade do conhecimento na unidade da consciência foi enxergar que esses temas são os que nos arremessam diretamente nas potências da nossa personalidade adulta. Até então estávamos, nós adolescentes antes da faculdade, buscando o amor dos pais e dos amigos, ou ainda buscando se autoafirmar nos grupos de convivência. Agora iremos nos deparar com o círculo do dever (trabalho), do enfrentamento do medo da morte (neoplasia)* e da busca de exercer a consecução de nossos desejos com uma atitude sã, precavendo-se dos arroubos cegos de nossa libido.
No último encontro quis enxergar essa unidade também na forma como lidamos com esses assuntos na medicina. São lugares em que o exercício do cuidado sobre a saúde humana deve acontecer, de preferência, com um olhar sobre a comunidade, os riscos a que ela está exposta, a prevenção dos agravos que tendem a acontecer.
Quem é esta comunidade? Semestres passados entramos na comunidade lato sensu, aquela que residia do lado da unidade de saúde. Neste semestre, temos algumas comunidades quase específicas:
1. Aqueles que já podem investir na vida com sua força de trabalho;
2. Aqueles que já podem investir na vida com o exercício de sua sexualidade;
3. Aqueles que estão sujeitos aos riscos de degeneração celular que a vida trás para todos, independente se estão preparados para trabalhar ou fazer sexo.
Eu disse "quase específico", porque os dois primeiros tópicos abrangem muita gente, e o último arrasta a todos.
A parte chata da medicina para mim, e acho que para os alunos também, é ter que enxergar a vida dessas comunidades através de protocolos, questionários semi-estruturados, normas, abordagens sindrômicas. A parte boa da medicina é ter contato com essas comunidades. Nossa vida se abre, a consciência se amplia, a casa de onde viemos fica tão pequena, o mundo nos acena.
Desejo olhos de ver e mãos de tocar para todos estes que se iniciam no vasto quarto semestre desta faculdade. Haverá espaço na alma para tantos cenários de vida e dor? Há, quando não é pequena.
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