Vinte anos do Projeto Y — a palhaçoterapia que ajudei a fundar com um punhado de outros ousados. Na comemoração, a surpresa da noite nos atingiu: integrantes que hoje levam o projeto estavam nascendo no ano exato em que ele era fundado.
Chamaram-me de senhor pela primeira vez quando já iam dez anos que eu dava oficina de palhaçaria para cada uma das gerações recém-ingressas. Àquela época caiu-me mal aos ouvidos, hoje, casado com três filhos, é a norma.
Fui recebido com uma grande ovação ao despontar na rampa do salão com minha digníssima esposa, também ex-ypsiloniana. Descobri, em instantes, que o meu afastamento do projeto, motivado por trabalho e família, havia me transformado em lenda.
É fato que fui da geração fundadora, liderei o projeto, criei um blog com narrativas que davam voz ao que transbordava do peito após as visitas, gerei símbolos que fizeram do Y mais que uma letra substituta e, por fim, transformei a experiência em mestrado.
Por esses atos à luz do sol tomaram-me por lenda, e a luz dos feitos pareceu tão brilhante que ofuscou as sombras. Eu não queria inaugurar o projeto por medo de falir ainda mais na faculdade. Quem muito me amava à época me obrigou. Sem faltar uma reunião ou oficina, a cada momento me perguntava se eu estava fazendo o certo em me dedicar tanto por uma coisa que eu não sabia se vingaria. Quando fomos pedir permissão ao diretor do hospital para que utilizássemos o espaço da pediatria para nossas intervenções, eu esperava um “não” objetivo e não o “sim” pacífico que houve. Tive uma alegria confusa ao saber que os professores do departamento de clínica apoiaram em peso nossa iniciativa, sem reservas.
Absolutamente toda visita de palhaço eu tinha medo de não conseguir encontrar o jogo certo, de não extrair a graça, e pior do que ser ridicularizado, simplesmente não ser notado. Por conta disso, nunca fui sozinho à enfermaria. Não por recear não dar conta de todas as crianças, mas por não suportar a imagem em meus delírios de ser apenas um bobo sem graça perdido no hospital. De perdido, bastava eu mesmo, sem nariz vermelho, trôpego por muitos anos naquele labirinto cinza do campus.
Eis que por não deixar o medo dominar, e por fazer prevalecer a poesia e não a dúvida, acabou que para a história ficaram apenas minhas conquistas. Revelado agora o que se passava no meu lado B, bem que o meu nome poderia se esmaecer, ou se esconder em um acrônimo.
RAfael
BeLise
MaríLia
GAbi
KariNe
E é um nome pequeno, muito pequeno, para caber tantos nomes a quem ele deveria servir de suporte. Mas, um em especial, me chamou atenção no dia. Um jovem de nome Arthur assumiu o meu lugar quando me afastei. Levou as oficinas de preparação dos recém-ingressos adiante, lembrava-se de muitos detalhes do que eu lhe passei. Era um broto de gente e um disforme palhaço quando eu o tinha como aprendiz, e ali, naquela noite, discursando sobre sua experiência destes últimos oito anos se mostrava um rapaz lindo, esperto, engraçado, sensível. Um rosto que se perdera na minha mente entre tantos outros mostrava-se ali transfigurado, deixando transparecer um amor pelo projeto e pelos integrantes que me fez lembrar do melhor que eu tinha em mim à época.
Quando eu voltava de cada um dos dias de oficina, a empolgação era tanta que eu escrevia um diário vomitando palavras que vinham do peito ainda acelerado. Arthur me fez lembrar que em algum momento eu disse que o Y não importava. O Y, se você olhar bem, é uma ponte côncava, com sua coluna mestre fincada no nada; é uma flor com o pistilo vazio. O Y é um nada, é um vazio, mas preenchido por Rafaéis, Belises, Marílias, Gabis, Karines, …, Arthures. O mais lindo é ver esse vazio no meio da ponte povoado, e o pistilo fecundado por eles.
Que bom que me obrigaram lá atrás, e que eu não desisti.
Nenhum comentário:
Postar um comentário