Entramos em contato com os assuntos do ciclo de desenvolvimento humano. Para tanto, investigamos a epidemiologia que traça um panorama da saúde da mulher e da criança na primeira metade do semestre, e do idoso, na segunda metade.
Após esse panorama construído e assimilado, partimos para a prática, que é a busca de sentir na pele o processo de saúde e adoecimento das pessoas nos seus contatos mais básicos com o serviço de saúde. Empreendemos, então, consultas de pré-natal e puericultura, a construção de genograma, escuta e sistematização de história de vida, aplicação de escalas geriátricas nos idosos de uma instituição de longa permanência.
Antes de começar a ida para a instituição de cuidados para idosos, senti vontade de compartilhar o que veio passando pela minha busca de aprendizado.
1) Descobri a fundação Maria Cecília Solto Vidigal, que esteve recentemente no Ceará colaborando para o Curso de Formação em Promoção do Desenvolvimento Infantil. Eles defendem que não basta uma política de saúde que permita o diagnóstico e a intervenção precoce das doenças que mais matam as crianças se não houver concomitantemente a capacitação dos adultos para cuidar que as crianças se desenvolvam bem. Na verdade, é um movimento histórico da puericultura. Quando estávamos em um país subdesenvolvido, precisávamos, sim, aumentar nossa vigilância sobre estas doenças que matam muito e não deveriam matar. Mas, agora, toda uma leva de crianças significativamente maior do que algumas décadas atrás sobrevivem ao primeiro ano, e estávamos negligenciando que, até os seis anos, um conjunto de medidas relacionadas ao seu desenvolvimento psico-afetivo e social precisavam ser melhor trabalhadas. Como sempre, isso é uma atitude que requer uma abordagem multi-tudo, incluindo a grande sensibilização de todos os adultos para proporcionar um ambiente saudável para todas as nossas crianças. Eis o site da fundação: http://www.fmcsv.org.br
2) Andei tendo contato com mães de primeira viagem, e entendendo as dúvidas que rondam essa primimaternidade. Com isso, vou comparando suas dúvidas com as minhas quando à época do meu filho estar novo no mundo. Um enfermeiro muito querido, amigo meu, me ajudou a dar vazão a algumas demandas delas, já que, atualmente, não exerço atividade de ambulatório e seguimento de pacientes. São queixas que vão desde a amamentação até os problemas de pele, funcionamento intestinal, primeiros resfriados e sinais de alarme. E ainda tive a oportunidade de conhecer mesmo alguns complexos laços familiares.
3) Tive o momento ímpar de dar aula sobre reflexões acerca de conversar com os pacientes para além das técnicas de anamnese. Uma abordagem que, sem prescindir o interrogatório em busca da verdade sobre a doença e as possibilidades de cura, aproxima-se da pessoa em busca de acolhê-la como sujeito que, segundo os preceitos da medicina de família e comunidade, deverá ser co-partícipe de uma relação de cuidado pelo resto da vida.
4) Estamos acabando de sair de uma prática de construção de genogramas. Já havia estudado isso, e praticado sua construção à época de minha residência médica, mas fico cada vez mais surpreso o quanto ele pode nos ajudar a perceber que o paciente não é um ser sozinho, que seus males possuem história dentro de relações, que essas relações, por vezes, o deixam ainda mais vulneráveis, e que a nossa intervenção médica isolada, bastas vezes, será muito pobre se for apenas clínica. Fui atrás de relembrar como foi o ciclo de maldições, e relações patológicas, que circundou a tragédia de Édipo Rei, uma das histórias mais conhecidas da mitologia grega. Em breve irei expor o genograma dele por aqui.
5) Por fim, mesmo sem termos ainda conhecido as histórias de vida de alguns habitantes da instituição de longa permanência que acolhe nossa atividade de aprendizado, venho aprendendo grandes lições com a disciplina de cuidados paliativos, tão nova em nossa grande medicina moderna, tão necessária para o fato do qual ninguém escapou: a nossa morte. Esse aprendizado vem pelo litoral em que minha esposa navega, com muitas ondas violentas que vivem querendo derrubá-la. Todavia, profissional dedicada que é, vem lutando bravamente para exercer o paliativismo nas terras áridas do Ceará, cuja gestão, seja do SUS ou da Saúde Suplementar, negligencia completamente o cuidado que se deve ter para com aqueles que vem findando este ciclo de vida.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Por uma outra medicina
Comecei este blog com uma poesia. Dizia ela que estou relendo minha história (de ser médico), e re-experimentando o que passou. Quando da primeira vez que o fiz, quase desisti de seguir este caminho (o da medicina). Não é que fosse árido. Muitos colegas passaram pelas mesmas veredas e, embora sofridos também, se encontraram em algum caminho que os fez prosseguir.
Sempre fui um forasteiro. Veja que o único projeto que decidi me engajar era um de palhaços de hospital. A literatura que mais me chamava a atenção era a da estante das ciências humanas. Quando saía com amigos não-médicos, me diziam que eu não parecia ser estudante de medicina. Meus trajes à faculdade despertavam incômodo nos professores mais puritanos. Fiquei para a avaliação final em várias matérias, e não era porque não estudava, mas porque minha forma de pensar a vida e o corpo humano se chocava diretamente com aquela lógica estampada nos cânones.
Eis que venho descobrindo outras medicinas. Elas existem. Existe vida médica para além da medicina que aprendi na faculdade. Falam sobre outras formas de enxergar o mundo, o homem, as doenças, o retorno à saúde. São outras tantas lógicas.
Ensinaram-me, os velhos professores, que a história era a resultante das lutas do tempo. Nunca me disseram que entre os destroços do passado havia verdades sepultadas, sufocadas. Pensei que o que chegava hoje em nossos ouvidos era o diamante perfeito, burilado pelos heróis que venceram na história. Nunca me disseram - não com tanta veemência - que a luta destes heróis havia matado gente boa, decepado cabeças formidáveis. Então, o meu ato de re-leitura da medicina, não se contentou apenas em re-ler a que me ensinaram, mas em re-ler toda a medicina. E buscar ouvir os mortos e os moribundos. Venho encontrando os elos perdidos de mim.
Grandes nomes, dezenas deles, médicos formidáveis acreditaram que a vida era o valor maior, e não a bioquímica, e não a anatomia dos cadáveres desconhecidos. Entendiam que a vida não podia ser reduzida a qualquer fórmula. E, no entanto, vivemos extrapolando nossos remédios diretamente dos laboratórios (in vitro) para os seres vivos (in vivo), sem pudor, como se fosse uma passagem possível e tranqüila. Venho encontrando o meu rosto encarnado nos fantasmas de ontem. Uma nova medicina percorre minha veias e me faz sorrir. Ela vem sendo o retalho de muitas teorias tidas como ridículas.
Entendi, enfim, porque tive de passar pela palhaçaria até chegar aqui. Não tenho mais medo do ridículo. Aprendi que nele nos movemos e vivemos. Ele é o nosso combustível e a nossa graça. Infeliz aquele que nunca levou uma queda e riu de si. Prossigamos os estudos!
Sempre fui um forasteiro. Veja que o único projeto que decidi me engajar era um de palhaços de hospital. A literatura que mais me chamava a atenção era a da estante das ciências humanas. Quando saía com amigos não-médicos, me diziam que eu não parecia ser estudante de medicina. Meus trajes à faculdade despertavam incômodo nos professores mais puritanos. Fiquei para a avaliação final em várias matérias, e não era porque não estudava, mas porque minha forma de pensar a vida e o corpo humano se chocava diretamente com aquela lógica estampada nos cânones.
Eis que venho descobrindo outras medicinas. Elas existem. Existe vida médica para além da medicina que aprendi na faculdade. Falam sobre outras formas de enxergar o mundo, o homem, as doenças, o retorno à saúde. São outras tantas lógicas.
Ensinaram-me, os velhos professores, que a história era a resultante das lutas do tempo. Nunca me disseram que entre os destroços do passado havia verdades sepultadas, sufocadas. Pensei que o que chegava hoje em nossos ouvidos era o diamante perfeito, burilado pelos heróis que venceram na história. Nunca me disseram - não com tanta veemência - que a luta destes heróis havia matado gente boa, decepado cabeças formidáveis. Então, o meu ato de re-leitura da medicina, não se contentou apenas em re-ler a que me ensinaram, mas em re-ler toda a medicina. E buscar ouvir os mortos e os moribundos. Venho encontrando os elos perdidos de mim.
Grandes nomes, dezenas deles, médicos formidáveis acreditaram que a vida era o valor maior, e não a bioquímica, e não a anatomia dos cadáveres desconhecidos. Entendiam que a vida não podia ser reduzida a qualquer fórmula. E, no entanto, vivemos extrapolando nossos remédios diretamente dos laboratórios (in vitro) para os seres vivos (in vivo), sem pudor, como se fosse uma passagem possível e tranqüila. Venho encontrando o meu rosto encarnado nos fantasmas de ontem. Uma nova medicina percorre minha veias e me faz sorrir. Ela vem sendo o retalho de muitas teorias tidas como ridículas.
Entendi, enfim, porque tive de passar pela palhaçaria até chegar aqui. Não tenho mais medo do ridículo. Aprendi que nele nos movemos e vivemos. Ele é o nosso combustível e a nossa graça. Infeliz aquele que nunca levou uma queda e riu de si. Prossigamos os estudos!
sábado, 17 de outubro de 2015
Palestra sobre Homeopatia dado em Encontro Regional de Médicos
Fui convidado a dar uma palestra sobre homeopatia no Outubro Médico, encontro anual entre os pares do Ceará. O tema que me foi proposto era Homeopatia: uma medicina centrada na pessoa. Como não sou homeopata ainda, abordei na perspectiva do médico de família e do aprendiz de homeopatia.
Quando, atualmente, os médicos nos entregam essa temática, tem-se em mente pelo menos duas coisas: 1. que a medicina, de alguma forma, por alguma corrupção estranha e histórica, deixou de ser centrada no sujeito/pessoa (para ser centrada em que, pelo amor de Deus?!) 2. que ser centrada no sujeito/pessoa é uma virtude que tem de ser resgatada, e é uma beleza que enobrece aquele que o faz.
Todavia, quando me entregaram essa temática, me veio logo em mente as discussões mais atuais e fervilhantes que aconteceram nas ciências humanas sobre essa categoria que amamos tanto desde Descartes: o sujeito. Decidi, então, falar sobre a história do que vem sendo esse sujeito.
Antes mesmo de Descartes, nos conta, por exemplo, Lucien Jerphagnon, esse amor pelo sujeito surge com a doutrina cristã, cujo Deus revelado, ao contrário de outras sociedades teocráticas, tinha um amor especial por cada indivíduo singular em busca de ativamente construir um processo salvador para sua história que, por exemplo, finda em uma escatologia onde salvar-se ou perder-se para sempre é o nó górdio. É dessa história, um dos pilares de nossa civilização, que descende nossa concepção de individualidade, respeito pelo outro, dignidade do outro, bem como todas as nossas esperanças de um final feliz, de um projeto de cura possível.
Descartes inaugura um pensamento que coloca o sujeito como categoria cognoscente principal, a partir da qual, e apenas a partir dela, se pode pensar o resto do universo. Politicamente isso significa que está em nossas mãos, e apenas em nossas mãos, não mais em qualquer ordem natural pré-estabelecidade, conduzir o nosso projeto de salvação, em busca da verdade (ciência), em busca da justiça (política), em busca da felicidade (religião). Tanto ele quanto o inglês Bacon, em comum acordo, acreditavam que esse sujeito dotado, a partir de então, de todo poder e credibilidade poderia se tornar "como mestre e senhor da natureza". A natureza já não era entendida aqui como uma aliada, mas como uma inimiga. Vide aqui o debate que ocasionou nas almas o terremoto que devastou a cidade de Lisboa em 1755.
Assim, Descartes contribui com uma concepção de um sujeito que temos como onipotente, dotado de uma razão que pode dominar o mundo e, enfim, portador de uma chama que pode nos conduzir para a própria salvação. O movimento iluminista vai encarnar em larga escala esse otimismo.
A história nos devolve ao devido lugar. O sujeito que surgiu no começo do século XVIII como esperança de emancipação do homem de seus males naturais se volta contra o próprio sujeito provocando as maiores chacinas conhecidas até então com as Guerras Mundiais. E partiu mesmo de países como Alemanha que eram tidos como centros culturais do mundo. A iluminação intelectual, portanto, não nos conduziu para um fim salvador, mas para uma catástrofe.
A crítica que se levanta contra o "mundo da técnica", mostra um sujeito que abandona seu projeto primeiro de devolver a paz e a felicidade para a humanidade e se perde no trabalho de ser um funcionário de um projeto que ele não mais entende os fins últimos, que o objetivo final lhe escapa e, até mesmo, não lhe importa. Deixa-se de ir em busca do novo para o bem, e cai-se na busca do novo pelo novo. As tecnologias guiam o homem para apenas inovar e competir.
O que a medicina tem a ver com isso? Ela, sendo atividade humana, segue, infelizmente, esse mesmo clima. Quando a revolução científica despontou no nascimento da idade moderna, nosso renascimento filosófico, uma onda de otimismo visando ao bem comum do homem se nos tomou. Com o tempo, esse objetivo último foi se esvaindo e caímos em uma medicina que não mais tem o projeto nobre da saúde como um fim último e sempre revisitado, mas que se encanta pelas inovações tecnológicas, as descobertas infindas de laboratório, a produção em massa de artigos científicos, ainda que de péssima qualidade, a prioridade da técnica sobre o sujeito. O tempo das consultas diminuem, a relação médico-paciente se esvazia.
Então, quando falamos de uma medicina centrada no sujeito, falamos de um retorno a um tempo bom?
Acredito que não. Estamos vivendo a busca de uma nova forma de enxergar o sujeito e suas relações. O grande erro de Descartes, perfeitamente perdoável pelo contexto político da época, foi ter colocado no sujeito o poder de senhorear tudo. Foi necessário descobrirmos o quanto isso imitava o conto do aprendiz de feiticeiro, portando uma varinha com poderes mágicos ilimitados, provocando um desastre em todo o campo de treinamento.
Hoje, estamos indo em busca de medicinas - falo no viés da medicina, claro - que entendam o sujeito-médico como um ser insuficiente, portanto, necessitado de todos os demais profissionais que o complementem. Surge assim a categoria do trabalho interdisciplinar. Um sujeito cuja razão não pode ser a medida de todas as coisas, sob pena de se tornar totalizadora, totalizante, redutora, e que, assim, aceita e estimula a participação do sujeito-paciente no seu processo de cura. O processo do cuidado em saúde deixa de ser uma prescrição e passa a ser um acordo de pares. Por fim, um sujeito que não mais enxergue a natureza como sendo uma inimiga, mas uma aliada. E aqui é onde a homeopatia entra com toda a força. Os medicamentos homeopáticos são, por natureza, um apertar amigável de mãos com a natureza curadora do próprio indivíduo. Eles não buscam apagar o fogo, conter a todo custo as placas tectônicas que provocariam o terremoto, mas conduzir o fogo ou o terremoto para uma comoção que promova a recuperação do doente. Os movimentos naturais da doença não são inimigos per si, são movimentos de cura que precisam ser bem apascentados.
É assim que eu lanço uma outra categoria nessa palestra que dei: a medicina do pastoreio. O pastor de animais geralmente tem uma inteligência que sabe dialogar com a natureza, sabe dos perigos de alguns caminhos, a facilidade de outros, onde há a fonte de beber, onde há as lamas que poderiam prender suas ovelhas. Sabe mesmo quando é dia de sol ou de chuva. Não busca o lucro de uma produção infinita e cega, mas a boa condução que os fará - a ele, a sua família e ao seu gado - se alimentar bem para voltar a salvo para casa ao final do dia.
Tentei começar, enfim, uma discussão sobre a necessidade de reelaborarmos esse tal de "sujeito" para um que não nos conduza de novo para o abismo.
Quando, atualmente, os médicos nos entregam essa temática, tem-se em mente pelo menos duas coisas: 1. que a medicina, de alguma forma, por alguma corrupção estranha e histórica, deixou de ser centrada no sujeito/pessoa (para ser centrada em que, pelo amor de Deus?!) 2. que ser centrada no sujeito/pessoa é uma virtude que tem de ser resgatada, e é uma beleza que enobrece aquele que o faz.
Todavia, quando me entregaram essa temática, me veio logo em mente as discussões mais atuais e fervilhantes que aconteceram nas ciências humanas sobre essa categoria que amamos tanto desde Descartes: o sujeito. Decidi, então, falar sobre a história do que vem sendo esse sujeito.
Antes mesmo de Descartes, nos conta, por exemplo, Lucien Jerphagnon, esse amor pelo sujeito surge com a doutrina cristã, cujo Deus revelado, ao contrário de outras sociedades teocráticas, tinha um amor especial por cada indivíduo singular em busca de ativamente construir um processo salvador para sua história que, por exemplo, finda em uma escatologia onde salvar-se ou perder-se para sempre é o nó górdio. É dessa história, um dos pilares de nossa civilização, que descende nossa concepção de individualidade, respeito pelo outro, dignidade do outro, bem como todas as nossas esperanças de um final feliz, de um projeto de cura possível.
Descartes inaugura um pensamento que coloca o sujeito como categoria cognoscente principal, a partir da qual, e apenas a partir dela, se pode pensar o resto do universo. Politicamente isso significa que está em nossas mãos, e apenas em nossas mãos, não mais em qualquer ordem natural pré-estabelecidade, conduzir o nosso projeto de salvação, em busca da verdade (ciência), em busca da justiça (política), em busca da felicidade (religião). Tanto ele quanto o inglês Bacon, em comum acordo, acreditavam que esse sujeito dotado, a partir de então, de todo poder e credibilidade poderia se tornar "como mestre e senhor da natureza". A natureza já não era entendida aqui como uma aliada, mas como uma inimiga. Vide aqui o debate que ocasionou nas almas o terremoto que devastou a cidade de Lisboa em 1755.
Assim, Descartes contribui com uma concepção de um sujeito que temos como onipotente, dotado de uma razão que pode dominar o mundo e, enfim, portador de uma chama que pode nos conduzir para a própria salvação. O movimento iluminista vai encarnar em larga escala esse otimismo.
A história nos devolve ao devido lugar. O sujeito que surgiu no começo do século XVIII como esperança de emancipação do homem de seus males naturais se volta contra o próprio sujeito provocando as maiores chacinas conhecidas até então com as Guerras Mundiais. E partiu mesmo de países como Alemanha que eram tidos como centros culturais do mundo. A iluminação intelectual, portanto, não nos conduziu para um fim salvador, mas para uma catástrofe.
A crítica que se levanta contra o "mundo da técnica", mostra um sujeito que abandona seu projeto primeiro de devolver a paz e a felicidade para a humanidade e se perde no trabalho de ser um funcionário de um projeto que ele não mais entende os fins últimos, que o objetivo final lhe escapa e, até mesmo, não lhe importa. Deixa-se de ir em busca do novo para o bem, e cai-se na busca do novo pelo novo. As tecnologias guiam o homem para apenas inovar e competir.
O que a medicina tem a ver com isso? Ela, sendo atividade humana, segue, infelizmente, esse mesmo clima. Quando a revolução científica despontou no nascimento da idade moderna, nosso renascimento filosófico, uma onda de otimismo visando ao bem comum do homem se nos tomou. Com o tempo, esse objetivo último foi se esvaindo e caímos em uma medicina que não mais tem o projeto nobre da saúde como um fim último e sempre revisitado, mas que se encanta pelas inovações tecnológicas, as descobertas infindas de laboratório, a produção em massa de artigos científicos, ainda que de péssima qualidade, a prioridade da técnica sobre o sujeito. O tempo das consultas diminuem, a relação médico-paciente se esvazia.
Então, quando falamos de uma medicina centrada no sujeito, falamos de um retorno a um tempo bom?
Acredito que não. Estamos vivendo a busca de uma nova forma de enxergar o sujeito e suas relações. O grande erro de Descartes, perfeitamente perdoável pelo contexto político da época, foi ter colocado no sujeito o poder de senhorear tudo. Foi necessário descobrirmos o quanto isso imitava o conto do aprendiz de feiticeiro, portando uma varinha com poderes mágicos ilimitados, provocando um desastre em todo o campo de treinamento.
Hoje, estamos indo em busca de medicinas - falo no viés da medicina, claro - que entendam o sujeito-médico como um ser insuficiente, portanto, necessitado de todos os demais profissionais que o complementem. Surge assim a categoria do trabalho interdisciplinar. Um sujeito cuja razão não pode ser a medida de todas as coisas, sob pena de se tornar totalizadora, totalizante, redutora, e que, assim, aceita e estimula a participação do sujeito-paciente no seu processo de cura. O processo do cuidado em saúde deixa de ser uma prescrição e passa a ser um acordo de pares. Por fim, um sujeito que não mais enxergue a natureza como sendo uma inimiga, mas uma aliada. E aqui é onde a homeopatia entra com toda a força. Os medicamentos homeopáticos são, por natureza, um apertar amigável de mãos com a natureza curadora do próprio indivíduo. Eles não buscam apagar o fogo, conter a todo custo as placas tectônicas que provocariam o terremoto, mas conduzir o fogo ou o terremoto para uma comoção que promova a recuperação do doente. Os movimentos naturais da doença não são inimigos per si, são movimentos de cura que precisam ser bem apascentados.
É assim que eu lanço uma outra categoria nessa palestra que dei: a medicina do pastoreio. O pastor de animais geralmente tem uma inteligência que sabe dialogar com a natureza, sabe dos perigos de alguns caminhos, a facilidade de outros, onde há a fonte de beber, onde há as lamas que poderiam prender suas ovelhas. Sabe mesmo quando é dia de sol ou de chuva. Não busca o lucro de uma produção infinita e cega, mas a boa condução que os fará - a ele, a sua família e ao seu gado - se alimentar bem para voltar a salvo para casa ao final do dia.
Tentei começar, enfim, uma discussão sobre a necessidade de reelaborarmos esse tal de "sujeito" para um que não nos conduza de novo para o abismo.
A palestra encontra-se temporariamente acessível aqui para ouvir ou para download:
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
Conversa médica
Fui convidado pela coordenadora do módulo em que estou lotado para falar sobre um dos temas mais caros para mim atualmente: a racionalidade médica.
O assunto foi contextualizado pela atividade que empreendemos junto a uma instituição de longa permanência. Nossa primeira abordagem é conhecer o idoso através da sua história de vida.
A grande questão é que os médicos nunca foram ensinados a ouvir uma história de vida, mas sempre tentar encontrar a verdade nas memórias de doença que acometem alguém por mais ou menos tempo. Minha missão, então, era revelar essa forma de ver que molda o nosso olhar ao redor da doença e não em torno do sujeito. Nos faz pensar em padrões universais e não em singularidades. Não é a toa que há essa crise do cuidado com os pacientes que estamos enfrentando. As doenças crônicas se alastram com a conquista da longevidade, e a doença vai perdendo o padrão do livro e ganhando a particularidade de cada indivíduo. À medida que uma doença se aprofunda, é feito uma máscara que vai se amoldando a face de cada um, constantemente modificando essa face, se escondendo nela. A doença passa a ser uma forma de existir.
- Como poderíamos identificar os pontos em que poderíamos ajudar se apenas estivéssemos em busca da pureza livresca de uma síndrome?
É aqui que entendo ser importante a abertura do espírito para sabermos ouvir uma história de vida. E a habilidade que sinto mais ser necessária é conversar.
Muito embora, ao final, queiramos ter um quadro da pessoa com quem conversamos na cabeça, importa que tentemos não selecionar o que ela nos disser, pois tudo de sua boca importa. Não é a verdade que quero enxergar, mas ela, a pessoa. Essa atitude da comunicação, fundada na gratuidade, é o que torna nossa profissão menos rancorosa, menos tensa, menos desgastante.
Não é para abominar a atitude do interrogatório ou do diálogo, todas servas da verdade. Precisamos delas para fechar diagnóstico e propor condutas passíveis de ser submetidas às pesquisas, e assim melhorar-nos no geral. A conversa não busca melhora exterior às relações. O amadurecimento dela, que se faz quase sem querer, tende a gostosura dela mesma. É só lembrar das conversas entre amigos. E o silêncio confortável que se tem no meio delas.
O assunto foi contextualizado pela atividade que empreendemos junto a uma instituição de longa permanência. Nossa primeira abordagem é conhecer o idoso através da sua história de vida.
A grande questão é que os médicos nunca foram ensinados a ouvir uma história de vida, mas sempre tentar encontrar a verdade nas memórias de doença que acometem alguém por mais ou menos tempo. Minha missão, então, era revelar essa forma de ver que molda o nosso olhar ao redor da doença e não em torno do sujeito. Nos faz pensar em padrões universais e não em singularidades. Não é a toa que há essa crise do cuidado com os pacientes que estamos enfrentando. As doenças crônicas se alastram com a conquista da longevidade, e a doença vai perdendo o padrão do livro e ganhando a particularidade de cada indivíduo. À medida que uma doença se aprofunda, é feito uma máscara que vai se amoldando a face de cada um, constantemente modificando essa face, se escondendo nela. A doença passa a ser uma forma de existir.
- Como poderíamos identificar os pontos em que poderíamos ajudar se apenas estivéssemos em busca da pureza livresca de uma síndrome?
É aqui que entendo ser importante a abertura do espírito para sabermos ouvir uma história de vida. E a habilidade que sinto mais ser necessária é conversar.
"Conversar é falar sem tentar nem convencer o outro nem o vencer: o objetivo é a compreensão, e não o acordo. Distingue-se com issa da discussão (que supõe um desacordo e o desejo de superá-lo) e do diálogo (que tende a uma verdade comum). A conversa não tende a nada, ou só tende a ela mesma. Sua gratuidade faz parte do seu encanto. É um dos prazeres da existência, especialmente entre amigos: as próprias diferenças os alegram; por que procurariam suprimi-las?" (Sponville in Dicionário Filosófico)
Muito embora, ao final, queiramos ter um quadro da pessoa com quem conversamos na cabeça, importa que tentemos não selecionar o que ela nos disser, pois tudo de sua boca importa. Não é a verdade que quero enxergar, mas ela, a pessoa. Essa atitude da comunicação, fundada na gratuidade, é o que torna nossa profissão menos rancorosa, menos tensa, menos desgastante.
Não é para abominar a atitude do interrogatório ou do diálogo, todas servas da verdade. Precisamos delas para fechar diagnóstico e propor condutas passíveis de ser submetidas às pesquisas, e assim melhorar-nos no geral. A conversa não busca melhora exterior às relações. O amadurecimento dela, que se faz quase sem querer, tende a gostosura dela mesma. É só lembrar das conversas entre amigos. E o silêncio confortável que se tem no meio delas.
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