quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Notas e um poema qualquer

Hoje tivemos uma reunião geral dando boas-vindas aos novos professores, nos apadrinhando e, por fim, falando sobre um certo Teste de Progresso dos estudantes. 

O tal Teste de Progresso tem o objetivo de mensurar a qualidade da grade curricular e do projeto pedagógico da instituição. Almeja-se que, futuramente, todas as escolas médicas do Brasil sejam submetidas a esta avaliação a fim de que o aluno possa ver como está o seu próprio desempenho em relação a si, em relação aos outros colegas da mesma instituição e das instituições vizinhas, e que as instituições possam se comparar. O objetivo é que se tenha parâmetros para avaliar se a instituição cumpre o objetivo de formar médicos com as habilidades necessárias para atender a população. 

Houve quem perguntasse sobre se isso influenciava a entrada na residência médica ou se haveria uma forma de mensurar o quanto a faculdade estava preparando o aluno para entrar lá. Outros professores questionaram o posicionamento da faculdade em dar, como recompensa, meio ponto na média final do semestre, pelo simples fato de o aluno se submeter à prova, independente de seu desempenho na mesma, pois isso fazia com que medíocres passassem adiante. 

As falas sobre a mediocridade discente, a gana pela residência e as comparações entre os pares me levaram para aquele passado da minha miséria, do crônico desânimo e incomparável insucesso entre os colegas. 

Fui criado em meio a muita espiritualidade. A educação que me deram tornou-me um grande idealista e metafísico. Ao ir para a escola me acostumei a fazer os deveres, mas os domingos é que deram os fundamentos para o sentido da minha existência. Vivi-os junto à religião. Durante anos me foi passado uma forma de ver o mundo em que o espírito das coisas era o que mais importava. Isso me fez ingressar na faculdade sequioso para ver o espírito das pessoas. Deparei-me com corpos mortos, formolizados, dissecados, amputados, tecidos recortados, microtomizados aderidos a lâminas de microscópios.

Os companheiros corriam atrás de tudo. Eu corria de tudo aquilo. O corpo presente, a alma distante. O cansaço constante parecia ser a reclamação do corpo que caminhava sem alma. Em todos os lugares, ligas de estudo para setores pormenorizados da máquina humana, projetos de extensão sobre as mais diversas áreas da medicina, laboratórios de pesquisa renomados disponibilizando vagas. Eu parava em frente aos ratinhos e contemplava seus cárceres. Olhava os dedicados pesquisadores passando pelos corredores levando-os para mais uma injeção, desafio ou sacrifício. 

Juro que tentei estudar. Coloquei os pés em água gelada, curvei a cabeça insone sobre as páginas dos tratados, forcei os olhos abertos na biblioteca, apesar do estômago cheio. O que havia com aqueles meninos e meninas que perambulavam por ali que não estavam de luto junto comigo? Por que a vida deles continuou como se nada tivesse acontecido?

Acho que o modelo explicativo estava nos que queriam ser neurocirurgiões. O currículo tinha que ser muito bom, com vários artigos publicados, trabalhos apresentados em congressos, participação em iniciação à docência e iniciação científica, a melhor classificação nas provas de seleção. Não mudou muito do ritmo de vestibular. Mas, depois de todo o esforço que fiz para passar de primeira vez na faculdade*, acho que quebrei. 

Era isso, quebrei. Isso me define bem. Eu era um aluno quebrado. Eu e Cecília:


"É triste ver-se o homem por dentro:
Tudo arrumado, cerrado, dobrado
Como objetos num armário.

A alma, não.

É triste ver-se o mapa das veias
E esse pequeno mar que faz trabalhar seus rios
Como por obscuras aldeias
Indo e vindo, carregando vida, estranhos escravos.

Mas a alma?

É triste ver-se a elétrica floresta
dos nervos: para a estrela dos olhos e lágrimas,
Para a inquieta brisa da voz,

Para os contorcidos ninhos do pensamento.


E a alma?

É triste ver-se que de repente se imobiliza
Esse sistema de enigmas,
De inexplicado exercício,
Antes de termos encontrado a alma.

Pela alma choramos.
Procuramos a alma. 
Queríamos alma."    


Eu e Cecília Meireles. Um poema lido no momento do intervalo entre o tópico da glomerulonefrite por depósitos de IgA e uma outra glomerulonefrite lá.

*Algo muito importante que não podia deixar de comentar sobre minha rachadura tardia. Passei três anos mergulhado em estudo insano para passar no vestibular. No segundo destes anos, vovó morre lá em casa, de câncer de pulmão. Tossia enquanto alucinava com crianças que invadiam nossa casa para lhe tirar a dor. Eu estudava ao seu lado, porque me sentia profundamente ruim por ela estar ali e eu não estar ao lado dela o tempo inteiro, ao mesmo tempo que me sentia muito culpado por não estar com ela por inteiro, mesmo estando ali ao lado, porque precisava estudar. Puxa de um lado, puxa de outro: a gente quebra mesmo e não se dá conta. 

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