terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Acordando a agenda

Esse é o momento mais difícil para um médico de família na preliminar do seu trabalho no centro de saúde. Como chegamos verde nessa prática ao sair da faculdade, não entendemos que a nossa vida vai depender dessa etapa, e o "o que você achar melhor" direcionado ao coordenador da unidade pode significar o seu esgotamento em pouco tempo. 

No meu caso, não serei o médico de nenhuma equipe nem mesmo poderei ser considerado o médico daquele centro de saúde, porque sou apenas um professor cedido pela faculdade a fim de otimizar o aprendizado prático dos internos. 

Queriam me colocar para fazer visitas domiciliares, mas não havia carro disponível pela prefeitura. E o horário em que estamos no pingo do meio-dia nos impossibilita de deixar essa atividade algo sistemático. Pensamos em procedimentos que poderiam ser realizados na atenção primária, como lavagem auricular, pequenas suturas, drenagem de abscesso, retirada de nevos, curativos especiais. Todavia, ainda não tínhamos material para montar a sala, e as nossas atividades estão para começar. Pensei então em discussão de casos icônicos, aqueles que fazem o grosso do que atendemos, mas de uma forma que investisse no vínculo e no cuidado com o desfecho da demanda gerada. Explico. 

O que acontece na maior parte do nosso aprendizado é a resolução de uma queixa pontual, cuja resolução gira em torno de aplicar o conhecimento livresco sobre a realidade do problema que se nos aparece. O hospital prepondera como lugar privilegiado de aprendizado, nesse sentido, porque o graduando tem a oportunidade de acompanhar a melhora do paciente desde o momento da admissão até a alta ou a morte. Contudo, ainda nesse espaço, poucas vezes atentamos para o poder do vínculo, do cuidado, da insistência dos reencontros cotidianos, submersos que estamos ao olhar sobre a mudança do corpo com a terapêutica ou contra ela. 

O que eu pretendia com a última sugestão era que, nas nossas práticas de ambulatório, pelo menos ascendêssemos a esse olhar que vai para além do primeiro contato. Uma coisa é ver o paciente, seu corpo doente, dócil a disciplina hospitalar, outra, era ver o conflito entre as mais diversas forças da vida do indivíduo (cuidar de filhos, do trabalho, do prazer) em colisão com essa força a mais: a da terapêutica médica. Daí surgem novos problemas como a falta de adesão à nossa prescrição (por causa dos efeitos colaterias ou em virtude de outras prioridades bem na hora da tomada do remédio, etc.), ou a falta de efeito da medicação. Saber o que aconteceu com ele, ter um tempo para ver o ambiente em que está tentando se curar, os relacionamentos pessoais que facilitam ou dificultam o processo, que o causam ou o sanam, como o "filho que me adoece" ou "que é minha benção".  

Geralmente ficamos no nível do texto da morbidade. É o que apenas um encontro intenta. A longitudinalidade da presença na vida do paciente permite-nos acessar o contexto, as entrelinhas, as ironias, as metáforas, as poesias, os silêncios. É o que o exercício da medicina na família e na comunidade proporciona, o que a torna não-centífica em absoluto, mas uma práxis do cuidado com o outro, e o que os gestores não gostam de permitir, porque diminui o número de atendimentos.  

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