segunda-feira, 23 de abril de 2018

Tecer uma narrativa que caiba na realidade

Há alguns mitos gregos que dialogam com a medicina, dos mais óbvios aos menos. O mais, seria o de Apolo, que gerará Esculápio, que será, de algum modo, o ascendente semi-divino de Hipócrates. Esse é o escoamento lendário do poder de cura, desde o absolutamente divino ao humano. O menos, são as Moiras, que fiavam o tecido do destino das pessoas. Estamos estudando, no momento, a anamnese. A entrevista médica tem algo da costura divina, a partir de uma perspectiva humana. 

Que é a realidade para nós senão um conjunto de significados que nos são óbvios desde infância? Nascemos já dentro de um tecido linguístico que nos acolhe desde nossa ingenuidade crítica. Vamos aprendendo quem é nossa família e o que são os objetos que se nos avizinham. Vão nos dizendo o que são nossos sentimentos e as vontades que nos motivam, como a de fazer cocô. Coisas óbvias e cotidianas. 

Um belo dia, alguma coisa da razão individual se desperta e estranhamos a realidade. Ela não parece óbvia. Tanto mais é assim quanto mais somos acordados pela dor contínua, insistente, torturante. Os conceitos que nos foram dados não são suficientes para sanar o estranhamento provocado pela dor. "O que é essa pontada que maltrata meu peito? Nunca senti isso por tanto tempo. E agora vem com essa febre. Quando vai parar? E por que com calafrios?". 

Do lado divino, o das Moiras, é uma história que se fia desde o alto, acima da vida humana, superior aos construtos racionais que deixava nossa vida coerente. Toda nossa vida é fiar um manto, a partir de nossa perspectiva mortal, que cubra o mais perfeitamente possível o que nos foi dado pelo destino. A perda radical da coerência gera o desespero.  Do lado humano, o dos médicos, tenta-se fazer surgir da pessoa em desespero uma tessitura que revele qualquer forma possível com que se possa trabalhar e novamente devolver ao indivíduo o poder de retomar a coerência de sua existência. O caminho de retorno à coerência se dá na esperança. 

Na escola platônica, a arte da anamnese consistia em fazer relembrar a forma do manto das Moiras, que, supunha-se, a alma teria entrevisto antes de cair no mundo sensível. Estou lhes dizendo que, em um mundo onde se acredita numa verdade acima do humano, haveria como ou relembrá-la ou tentar imitá-la diuturnamente através de construtos racionais que nos fizessem devolver a razão de ser das coisas que nos afetam. O segundo caminho é o mais aceito em diálogo com as ciências humanas hoje em dia, isto é, a reconstrução de narrativas que tornem a vida coerente e suportável. 

Toda a técnica que vocês utilizaram para apresentar o caso para nós foi um exercício mitológico de tessitura de narrativas que nos devolvesse (a nós e aos pacientes) a coerência da vida para seguir lutando por ela. A clínica médica diária se apoia nessas narrativas, tentando fazê-las cada vez mais verossímeis através das relações com os achados patológicos evidentes no próprio corpo humano ou no corpo social. 

Duas conclusões de tudo isso que expus: 
  1. A realidade que nos circunda, tanto mais a da dor, é sempre superior a qualquer narrativa que possamos engendrar. Não raro ela nos esmaga, nos deixa perplexos diante do incognoscível. Não é de se admirar recorrermos à fé, cuja narrativa provém de um discurso revelado, pretensamente, advindo do Deus ou dos deuses. É como se as Moiras rasgassem um pouco do destino e deixassem-no entre nós.
  2. A força do exercício de narrar a vida em um todo coerente é tamanha que se poderia afirmar que uma fratura só não é curada pela fala porque ainda não se encontrou as palavras certas para a coligir.   

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