Há alguns mitos gregos que dialogam com a medicina, dos mais óbvios aos menos. O mais, seria o de Apolo, que gerará Esculápio, que será, de algum modo, o ascendente semi-divino de Hipócrates. Esse é o escoamento lendário do poder de cura, desde o absolutamente divino ao humano. O menos, são as Moiras, que fiavam o tecido do destino das pessoas. Estamos estudando, no momento, a anamnese. A entrevista médica tem algo da costura divina, a partir de uma perspectiva humana.
Que é a realidade para nós senão um conjunto de significados que nos são óbvios desde infância? Nascemos já dentro de um tecido linguístico que nos acolhe desde nossa ingenuidade crítica. Vamos aprendendo quem é nossa família e o que são os objetos que se nos avizinham. Vão nos dizendo o que são nossos sentimentos e as vontades que nos motivam, como a de fazer cocô. Coisas óbvias e cotidianas.
Um belo dia, alguma coisa da razão individual se desperta e estranhamos a realidade. Ela não parece óbvia. Tanto mais é assim quanto mais somos acordados pela dor contínua, insistente, torturante. Os conceitos que nos foram dados não são suficientes para sanar o estranhamento provocado pela dor. "O que é essa pontada que maltrata meu peito? Nunca senti isso por tanto tempo. E agora vem com essa febre. Quando vai parar? E por que com calafrios?".
Do lado divino, o das Moiras, é uma história que se fia desde o alto, acima da vida humana, superior aos construtos racionais que deixava nossa vida coerente. Toda nossa vida é fiar um manto, a partir de nossa perspectiva mortal, que cubra o mais perfeitamente possível o que nos foi dado pelo destino. A perda radical da coerência gera o desespero. Do lado humano, o dos médicos, tenta-se fazer surgir da pessoa em desespero uma tessitura que revele qualquer forma possível com que se possa trabalhar e novamente devolver ao indivíduo o poder de retomar a coerência de sua existência. O caminho de retorno à coerência se dá na esperança.
Na escola platônica, a arte da anamnese consistia em fazer relembrar a forma do manto das Moiras, que, supunha-se, a alma teria entrevisto antes de cair no mundo sensível. Estou lhes dizendo que, em um mundo onde se acredita numa verdade acima do humano, haveria como ou relembrá-la ou tentar imitá-la diuturnamente através de construtos racionais que nos fizessem devolver a razão de ser das coisas que nos afetam. O segundo caminho é o mais aceito em diálogo com as ciências humanas hoje em dia, isto é, a reconstrução de narrativas que tornem a vida coerente e suportável.
Toda a técnica que vocês utilizaram para apresentar o caso para nós foi um exercício mitológico de tessitura de narrativas que nos devolvesse (a nós e aos pacientes) a coerência da vida para seguir lutando por ela. A clínica médica diária se apoia nessas narrativas, tentando fazê-las cada vez mais verossímeis através das relações com os achados patológicos evidentes no próprio corpo humano ou no corpo social.
Duas conclusões de tudo isso que expus:
- A realidade que nos circunda, tanto mais a da dor, é sempre superior a qualquer narrativa que possamos engendrar. Não raro ela nos esmaga, nos deixa perplexos diante do incognoscível. Não é de se admirar recorrermos à fé, cuja narrativa provém de um discurso revelado, pretensamente, advindo do Deus ou dos deuses. É como se as Moiras rasgassem um pouco do destino e deixassem-no entre nós.
- A força do exercício de narrar a vida em um todo coerente é tamanha que se poderia afirmar que uma fratura só não é curada pela fala porque ainda não se encontrou as palavras certas para a coligir.
Ontem estive à missa, e minha eventual participação junto à esposa que vinha sendo sincera não aconteceu. Fiquei olhando o Ressuscitado com dúvida. Não de que ele não tenha ressuscitado ou que ele não tenha todo o poder que dizem ter, mas de porque não vejo esse poder cotidianamente. Já que ele rasgou o véu do templo, e até cadáveres perambularam pelas ruas daquele dia esquisito da crucificação, a partir da constatação do corpo ausente dentro da gruta com a pedra rolada, o mundo das experiências imediatas deveria ter se tornado radicalmente outro. Uma avalanche de milagres deveria ter invadido as horas do café-da-manhã à ceia. Não foi isso o que aconteceu.
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Tenho algumas pessoas amadas sofrendo ao redor. Parkinson, depressões, ansiedade, transtorno de personalidade, transtorno bipolar. Os últimos esforços intelectuais que venho tendo me fazem enveredar nas medicinas alternativas. Encontrei nelas a possibilidade de enxergar onde o poder terapêutico (milagroso!) de Jesus se escondeu. Porque fala-se em esconderijo, deparei-me com as mais diversas noções de esoterismo ou ocultismo cristão, das quais já partilhava algum conhecimento por vir de berço espírita. Entre estas noções estão as de vários corpos sutis, para além do corpo físico palpável, que nos revestem. São eles passíveis de serem afetados por uma miríade de forças sutis que nos rodeiam, cuja sensação não é a de toque, mas que não deixa de ser menos real. Para conseguir captar essa realidade oculta é preciso desenvolver o olhar, preparar o espírito, estar aberto. É um tipo de ciência que exige a obediência da consciência ao invés da crítica, a disciplina para com os mestres ao invés do enfrentamento desafiador. É um outro reino - dir-se-ia paradigma - este das sutilezas.
A medicina que mais me cativou nesses pontos foi a homeopatia. Para o seu exercício é preciso abraçar todas essas crenças das sutilezas, muito embora ela flerte com o comportamento reativo das ciências normais, tendo surgido através de experimentações em seres humanos, anotando todos os resultados (auto)tangíveis. Desde que nasceu, nunca deixou de ser atacada pela medicina oficial, bem como nunca deixou de contra-atacar. Hahnemann, seu fundador, levantava discussões calorosas e tecia insultos explícitos contra o que denominou de alopatia, a prática médica violenta da utilização dos princípios contrários para lidar com as doenças (anti-inflamatório, anti-histamínico, anti-espasmódico, anti-biótico). Além do que, li testemunhos exitosos na literatura de profissionais de experiência e cultura vastas.
Após dois anos de estudos, ainda não tão profundos, vinha me apropriando das aproximações homeopáticas para o tratamento das doenças. Aventurei-me a dar alguns preparados para duas pessoas do meu círculo. Não funcionaram. Um deles possuía um sofrimento congênito, o outro uma devastação de alma. Culpei minha ignorância e não a homeopatia. Um filho se submeteu à outro preparado, e mais outro. Não funcionou a contento. Culpei o profissional. Todavia, há duas semanas tive uma sinusite clássica associada à uma crise asmática insistente. Falei com a melhor homeopata que já me atendeu, na qual via a excelência de toda a abordagem anamnésica e do raciocínio. A minha era uma crise clássica e aguda. Não acredito que houvesse tantas camadas de doenças assim para dificultar o resultado do tratamento, como às vezes o há em casos crônicos, precisando dissolver o que Hahnemann deu para chamar de miasmas antes de chegar ao núcleo da doença. Não deu certo. Fiquei ainda esperando os efeitos positivos da exoneração do mal, da superficialização dos humores malsãos por dois dias. Descrevi o quadro para minha esposa para ver se ela me ajudava a enxergar se havia algum sinal de melhora. Ela me fez entender que não havia. Era um momento muito especial para mim, por mil motivos. Estava com ventos excelentes nestes meses para me dedicar de vez à homeopatia. Esta ineficácia me foi de uma frustração sem igual.
Olhei ontem o crucificado e todo aquele povo a cultuá-lo. Jovens dedicados ao ministério da música, alegres, entoando cantos, animando os fiéis. O padre, a cada novo pensamento, crescia a voz exultando a páscoa do homem-Deus de Nazaré. Os corpos das pessoas não eram perfeitos. Enxergava mil deformidades por todos os lados. As almas, pelo menos três naquela igreja, eu as via quebradas, a minha e a de mais dois conhecidos. Um jovem à minha frente desviava sua atenção para o celular. Uma criança levantava as mãos imitando a multidão. A secreção do meu nariz diminuía à base do que as medicina alternativas tentam evitar: antibiótico e corticóide. Não são medicamentos sutis. Eles matam muita coisa dentro da gente para poder nos curar. E essa morte secundária por vezes acaba gerando outras doenças. É a denúncia que mais vem crescendo contra a medicina oficial nos últimos anos, pelo menos desde Ivan Illitch contra a iatrogenia.
Não é tanto a derrota para comigo que me infelicita, mas escorrer pelas mãos as possibilidades de tratamento dos sofrimentos das pessoas queridas que se me avizinham. Parkinson, depressões, ansiedade, transtorno de personalidade, transtorno bipolar. Medicamentos se acumulam limitados no efeito, induzindo tolerância, como se o mal estivesse apenas contido, a muito custo. Efeitos colaterais se assomam.
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Olho novamente para o Crucificado. Seu rosto ensanguentado mira o chão. Sua cora de espinhos, seu manto cobrindo as partes íntimas, seu corpo cadavérico. O poder dele trouxe vida a tantas pessoas e não conseguiu se salvar - até o dia da pedra rolada. Será se todo o teatro dos milagres era para chamar a atenção para o dia da ressurreição? Será se o poder de cura que ele tinha não é passível de ser apreendido por uma técnica conquistada pelos humanos? Será se o caminho de todo homem é suportar o calvário até a própria cruz, sendo o milagre diário o suportar a vida de deformidades até o acolhimento supremo nos braços do Pai? O milagre da igreja é manter as pessoas na fé, apesar de toda a incoerência e todo o ódio do mundo.
Há uma razão quase matemática na medicina oficial, pelo menos é onde ela se esforça em se fundamentar. Mas, toda a matemática do mundo não chega perto da promessa de salvação anunciada pela cruz, revelada no túmulo vazio, nas vestes vazias deitadas ao chão. Será essa a nossa sina? Tentarmos sobreviver com os recursos parcos da razão humana, que nos permite rastejar entre dias melhores e dias sombrios até o juízo final? Tarefas menores do dia-a-dia vão dando sentidos menores para a vida. Uma ansiedade de vez em quando paralisa. Rezar para que não dure muito. Esperar que a liberdade final se concretize, um dia.
Desabafos de uma mente inquieta. Não vou parar de buscar. A ignorância dos meios sempre é uma desculpa sensata para continuar a busca. Não quereria o Cordeiro que apenas nos entregássemos sem tantas reservas, sem tentar ser deuses como ele? Se assim o for, o mundo está bem errado. Não faz sentido. Essa dicotomia esgarça o espírito e deixa mais ansiedade do que consolo. Continuar pois, como Tântalo, para quem a sede era tudo.