quarta-feira, 23 de agosto de 2017

História de Vida e Medicina: em busca da possibilidade de diálogo

Todo semestre sou convidado para dar uma aula não usual à medicina: história de vida. Antes de conviver com minha orientadora de mestrado da educação nem sabia que isso era pauta de pesquisa. Hoje, a vejo como a chave para algumas portas que tento abrir na ciência dura. 

História de vida, ou biografização, ou narrativas de si, é algo que posso explicar de forma bem simples: o ato de reconstruir sua vida através das suas próprias palavras em determinado momento. É você contar como viveu. Quem estuda os discursos elaborados com esse propósito percebeu  várias particularidades que estão se amontoando em ciência, forjando capítulos nas ciências humanas. Uma das particularidades mais conflitantes com o que entendemos de história para a medicina é a liberdade da pessoa de ressignificar o que viveu através das palavras do agora. Para a medicina o nome disso é mentira, e dribla a possibilidade diagnóstica. 

Dessa forma, como sei bem onde piso, começo minha aula desafiando os estudantes em um caso clínico. A história (da doença)  da paciente vai se revelando na medida em que eles vão conseguindo decifrar as charadas dos sinais e sintomas. Depois do furor inicial, do diagnóstico mais provável encontrado, que era o gabarito que estava na minha cabeça quando formulei o caso, os levo para entenderem a diferença entre o que seria a história de um paciente e a história de vida contada por uma pessoa. Basicamente os faço perceber que aquela busca uma verdade diagnóstica, o sujeito condutor da construção sã desta verdade é o médico (às vezes é preciso estancar a verborragia do paciente); já na história de vida da pessoa, é ela que é o sujeito, e a verdade que importa é a que ela está conseguindo construir agora. 

Perceba que aqui se chocam exatamente as duas epistemes das ciências irmãs e briguentas, grosso modo, a verdade geométrica, que independeria das variações da realidade, e a interpretação pessoal do vivido, que pega a realidade como argamassa de uma narrativa. 

Para que, na medicina, a história de vida tivesse efeito de verdade, eu teria que provar ao médico que toda aquela narrativa aponta para a doença como entidade construída, que a doença não é um fato biológico independente que se apoderou do indivíduo forjando sintomas, mas é uma construção de uma caminhada. 

Quando falo isso, parece um discurso sedutor para os humanistas. Tal visão respeitaria a singularidade e a potência dos atores sociais para moldar o entorno. Mas, sinto estar falando de uma abstração incognoscível para os epidemiologistas que dominam a nossa forma de fazer ciência, isto é, baseada em evidências. Porque o que o epidemiologista ou o pesquisador clínico busca é exatamente o suco da realidade que não se altera com os acidentes de percurso provocados pela intervenção humana. Daí eles buscarem as fórmulas matemáticas para lhes ajudaram nesta higienização das teses. Seguindo essa esteira de produção de entidades nosológicas, acabam por encontrar sinais e sintomas consensuais em vários indivíduos em tal magnitude que podemos dizer que, na verdade, não sofrem eles do peso da própria vida, mas de uma doença comum a todos, a partir da qual podemos formular protocolos de pesquisa a fim de entender o melhor tratamento para - a doença. 

Não é fácil encontrar o campo em que estas duas vertentes vão se harmonizar da forma como a medicina ocidental oficial está cristalizada, então, como itinerário de pesquisa e de engrandecimento pessoal, estou indo atrás do estudo de outras racionalidades médicas que permitem vislumbrar o que seria a ponte entre estas formas de enxergar as histórias. Como a história de vida pode desaguar na história da doença?

Três formas já se me apresentam: o vitalismo homeopático, a antropologia da medicina tradicional chinesa, a perspectiva de causa-e-efeito do reencarnacionismo espírita. Desenvolve-los-ei em outros momentos. 

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