segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De volta ao hospital público (Parte 2)

Há cenas amenas. Algumas que passam na nossa visão, outras que passam pela alma.

Todo dia, pelo menos um religioso canta uma música, creio que evangélica. Ela chama milagres e traz consolo. Dia desses eram três, faziam coro. Não era tão afinado, mas era. Quero dizer, o simples fato de eles estarem ali, já é uma grandeza. 

Um rapaz trazendo sua bíblia na mão deformada chega para uma jovem pálida. 

- Perdoe o intrometimento, posso ler uma passagem?
- Claro!
- Você é evangélica?
- Não, mas preciso ouvir. 

Se fosse feita uma pesquisa e o Salmo 91 fosse o vencedor de leitura, não me admiraria. Já viram o quanto ele forte?


"Tu não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia, nem a peste que se propaga nas trevas, nem o mal que grassa ao meio-dia." (grifo meu)

As pessoas se acomodam como podem. Não dei plantão a noite, neste retorno, e acho difícil imaginar como os acompanhantes dormem. O chão é frio, e se não cheira a desinfetante forte, é que excrementos tomaram conta do ar.

Uma senhora dizia a outra:

- Mulher, eu tenho insônia. Aproveito para trabalhar como acompanhante de hospital. 

Era uma senhora gorda, coluna maltratada, olheiras fundas, e um grande sorriso mostrando poucos dentes. 

Mesmo no meio de tanta desgraça, aqui e acolá vê-se sorrisos (não raro flertes) e alguém contando uma piada para o outro. Pede-se para olhar "o meu paciente" só enquanto vai-se ali (fazer pipi, cocô, fumar, cuspir, tomar ar). 

De vez em quando o vão do corredor é ocupado por uma maca em transporte. O auxiliar manobra para conseguir transitar. Nós nos afastamos, encolhemo-nos no canto, em pausa, atentos, a postos, até ele passar. Um paciente que precisa ser transportado na maca, nunca está bem. Cor mórbida, semblante abatido, por vezes de máscara de oxigênio, quase sempre com uma sonda colocada na uretra para que ele não tenha o esforço de urinar. 

Após a maca ir, voltamos a busca:

- Dona Fulana de Tal, alguém sabe onde está Dona Fulana de Tal?
- Aqui, doutor, ela está aqui!
- Olá! Como você está hoje?
- Bem...


Segue:
Parte 3

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