sexta-feira, 15 de julho de 2016

Entrevista sobre Humanização Médica

Entrevista concedida por ocasião do Webinar sobre Humanidades Médicas para Mariana Dias, graduanda em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação de Juiz de Fora, Bolsista do Programa de Educação Tutorial - PET-FACOM


1) Você citou essa busca atual pela medicina alternativa. Você acredita que isso se deve a esse lado técnico altamente desenvolvido e que acaba por esquecer o lado humano? Você acredita que a medicina, de forma geral, tem respondido a essa demanda pelo lado humano?  

Quando eu terminei a faculdade de medicina, mergulhei em um grande hospital geral conhecendo o grosso do que a tecnologia tem para ofertar aos seres humanos. Percebi que esse grosso não é muita coisa em relação ao que o ser humano é por inteiro. Esse modelo que é vigente nos hospitais, e que nos forma em grande medida, não cabe mais no bolso dos países. Os governantes percebem cada vez mais, e isso já faz um tempo, que não se pode sustentar uma saúde que se pauta em tecnologias duras, densas, como essas de pedir ressonância para qualquer dor no ombro. Daí vem as medicinas alternativas e trazem práticas voltadas ao cotidiano, em ambulatório, com intervenções em estilo de vida e ambiente, trazendo também novas formas de enxergar o ser humano que, entre outras tantas caraterísticas, o vê como parte de uma grande ecologia. A maioria delas traz isso. Assim, elas nos revelam um lado que esquecemos: fazemos parte de uma grande teia, e tudo que acontece nessa teia nos afeta. Devemos cuidar de nós, cuidando do todo, e vice-versa. O modelo hospitalar não alcança esse tipo de prática. 

2) Quais iniciativas você acha necessárias para que o aluno, em um currículo tradicional, se aproxime mais da comunidade, da ideia de ver o paciente além somente da doença, mas também do seu contexto humano, histórico?  

O aluno tem que entrar na comunidade. Fazer dela o seu campo de prática privilegiado. Conhecer as dores que se gestam no meio das gentes. Quando entrei na faculdade, o que mais encantava os meus colegas era a dissecação dos corpos mortos. A prática dentro da comunidade era o mais entediante. Entramos jovens na faculdade. Não conhecemos nada da vida. Precisamos conhecer o que é a vida para saber o que ela é adoecida e como ela deveria ser melhor. Isso requer conhecer outros tipos de discursos que não o do biológico. Precisamos ouvir as falas dos lamentos, dos folclores, da fé que luta e resiste para viver apesar de tudo. As falas de resistência das pessoas, dos movimentos de saúde produzidos por elas. Um dia eu vi uma palestra de um senhor em um congresso falando sobre pautar a medicina sobre o paradigma da física quântica. Ao final, eu me levantei e sugeri que havia físicas tão belas quanto, e mais próximas de nós, como as dos ventos que levam e trazem os pescadores, dos ares que embalam as cantigas de roda, do som dos terreiros e das danças do povo. Eu queria dizer com isso que muitas vezes nos revestimos de conhecimentos tão abstratos que mais nos afastam dos pacientes do que nos aproximam dele. Vi uma estimativa catastrófica, recentemente, que dizia ser a compreensão da receita médica em torno de 30% na grande maioria dos pacientes. Isso significa que 70% do que temos na nossa cabeça não chega a ser praticado no dia-a-dia das pessoas. Como elas se curam, então? Ora, por sabedorias que brotam das conversas de comadre. E a maioria dos médicos tem aversão a essas autonomias, pois corrompem a ciência que eles aprenderam. Xingam-nas de superstição. Mas, elas estão lá, insistentes.


3) Em relação a sua vivência pessoal com a comunidade, como é conhecer os pacientes além da doença? Quais impactos isso gera para você enquanto pessoa e para o tratamento dos pacientes?

Vou lhe dizer uma doença: linfedema crônico de membros inferiores. Essa doença causa vulnerabilidade para se ter erisipelas de repetição. Quando estou no pronto-atendimento, a única coisa que me importa é saber se o antibiótico está atuando sobre o tecido infectado, diminuindo a vermelhidão e a dor. Na comunidade, conheci uma senhora com esse mal. Ela era mãe de três meninos, três pedras preciosas suas. Convidou-nos para entrar, tomar uma xícara de café com bolo. Conhecemos a casa, enxergamos os riscos que nela haviam que poderia lhe gerar quedas. Vimos que passa a maior parte do dia sozinha, mas que gosta de ir a igreja que fica a poucos quarteirões de casa. Conhecemos o carro que a leva, e o filho que a ajuda mais. E logo de saída ela nos mostrou os artesanatos que faz para complementar a renda. A visita, em termos médicos, era basicamente para renovar receitas, mas conhecer a mulher para além do linfedema foi nosso maior prêmio. Um médico centrado no paradigma da eficácia diria: se a erisipela é curada é o que importa, o resto é perfumaria. Mas, se essa pessoa não tem vínculo com um médico que regule o que deve ser rotina na sua vida e que esteja atento para o que sai do seu normal, ela adoece mais e tem menos resolubilidade no sistema de saúde. Sem contar que esse tipo de experiência é da ordem das relações autênticas entre os seres humanos. Um filósofo judeu alemão chamado Teodor Adorno, escreveu um texto sobre educação dizendo que o primeiro imperativo era fazer de tudo para que Auschwitz não se repetisse. Como aquela experiência dos campos de concentração podem se repetir? Caso nós venhamos a tratar as pessoas como números, ou melhor, continuemos a tratar. Essa é uma denúncia antiga, mas não devemos parar de denunciar. 


4) Quais são os desafios enfrentados pela medicina realizada de forma humanizada hoje?  

O diálogo com as ciências humanas. No último século nos convencemos de que a medicina é uma ciência que deve buscar a evidência, a certeza a todo custo. No convencemos facilmente disso quando olhamos o manejo das condições que põe nossa vida em risco iminente de morte. Mas, 80% das afecções humanas não fazem isso. Hoje em dia estamos vemos o alvorecer de uma sociedade que envelhece e tem que aprender a lidar com a decadência do corpo. Remédios de toda sorte seguram o que viria a ser um evento abrupto que conduziria à morte fulminante. Os médicos também estão tendo que lidar com outro tipo de medicina, que é a da prevenção. Essa medicina faz com que orientemos as pessoas saudáveis como se elas tivessem a possibilidade de adoecer. Muitas vezes já as vemos como doentes, apenas por terem a potência em si. Os conhecimentos, então, sobre a arte de dialogar, mas também e principalmente de ouvir, de deixar falar, de estimular viver e de buscar a felicidade apesar das doenças voltam a ser imprescindíveis para os médicos. Qual o valor terapêutico de uma boa amizade? Isso era um tema que um certo Epicuro falava à Grécia dos filósofos e que foi enterrado com o tempo. Pois esse filósofo achava que a filosofia era a medicina da alma. Pois bem, devemos voltar a estudar as coisas que importam para a alma. 


5) Em relação à lei de 2013 conhecida como "Ato médico". Ela modifica em algum aspecto a prática da medicina da família? Em alguns momentos parece fechar o papel do médico como exclusivamente técnico, como ela foi recebida pelos profissionais voltados para a comunidade?

A lei fala de atos técnicos estrito senso, mas o que venho falando aqui é universal. Todo profissional da saúde está sujeito à prestar culto ao ato do cuidado. O cuidado é para além de qualquer profissão. Somos os escolhidos pela sociedade para fazer isso de forma mais sistemática e com maior preparação. É esse cuidado que nos une como a grande classe dos profissionais da saúde. Mas, todos - é nossa condição humana - devemos cuidar uns dos outros. O simples fato de me esforçar por entender o que você quer dizer é uma espécie de cuidado. Como é algo que se espalha por sobre fronteiras, acaba unindo olhares. 


6) O que você acredita que o modelo da medicina da família pode acrescentar ao ser adaptado a outras especialidades médicas? 


Fico pensando no ortopedista que se especializou em ombro. Não podemos cobrar que ele saiba manejar uma hipertensão. E geralmente a pessoa que chega à ele é porque foi encaminhada pelo problema específico, cuja abordagem local pode ser a solução mais eficaz, por exemplo, uma neuropatia do nervo ulnar que precisa de descompressão cirúrgica. O que esse médico precisa saber é que aquele paciente precisa de um médico de referência, que saiba o que acontece com ele, a fim de entender onde aquela intervenção vai mexer no resto daquela vida, como vai influenciar não só no trabalho, mas no seu papel dentro da família. Os próprios planos de saúde vem acordando para essa necessidade e incentivando a busca por médicos de família como porta de entrada dos seus serviços.

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