quinta-feira, 26 de março de 2015

Contra a frustração do Médico de Família

Falamos sempre da imensa importância de nossa prática para o desfecho total da saúde populacional, porém sempre temos que levantar os empecilhos que enfrentamos para sermos reconhecidos. E a lista de obstáculos é grande. 

Os melhores argumentos que possuo são aqueles que transcendem as forças dos médicos para mudar essa situação. Por exemplo, a cultura biomédica que enaltece a forma como se dignóstica e trata as doenças que funciona perfeitamente no modelo infectológico de raciocínio, de cadeia linear efeito-causal, em que basta desvendar o agente etiológico, na maioria das vezes único, para, armando-se contra ele, debelar o efeito. Pneumonia? Streptococcus pneumoniae! Beta-lactâmico ou outro antibiótico a que ela é sensível. Uma medicina extremamente gostosa de se praticar. Efeitos quase imediatos. Paciente rapidamente satisfeito. Gratidão garantida. Todo o universo da prática médica secular rapidamente ali, na sua frente.

Mas, hoje fizemos uma intervenção comunitária. Atuamos sobre doenças, como a obesidade infantil, que precisa do apoio de vários setores da comunidade para ter efeitos mínimos de médio a longo prazo. Frequentemente fora do alcance visual e vivencial do médico que iniciou o projeto e o diálogo sócio-político. A não ser que ele descambe para a gestão em saúde, para a política em si, que tem esses dados na mão, que sente esse desfecho na pele da própria eleição, reeleição e satisfação do eleitorado. 

Foi por isso que uma aluna levantou sua objeção sobre até que ponto verdadeiramente esta atuação que a faculdade faz semestralmente está efetivamente valendo na melhoria da saúde das famílias que participam de nossa atividade. 

Paciência histórica foi nossa resposta. O modelo mais simbólico da paciência histórica são os recifes de coral. 




Que formam atóis de uma riqueza viva sem precedentes, cuja formação pode levar milhões de anos para se processar, até ficar assim:


Para isso foi preciso, entre muitos atributos, a ausência completa de liberdade e consciência dos trabalhadores (os corais) para que a vida tomasse o seu curso de gerar ainda mais vida a partir da sua própria degradação. 

Quando o ser humano desenvolve isso que os gregos antigos atomistas chamavam de desvio (clinâmen), passamos a questionar as ações da própria natureza de nos conduzir, a desobedecer os impulsos mais fundamentais e a discordar dos grandes processos que ela conduz em nós. Daí surgiu a política e a filosofia para que pudéssemos entrar em algum acordo que convencesse as pessoas de se engajarem nos projetos a favor da vida e da saúde no correr dos anos. Um processo moroso, doloroso, imprevisível. Por mais que debatamos, difícil prever o desfecho. Ainda mais difícil fazê-lo sem deixar que se sobreponha nossos interesses particulares em detrimento dos comunitários. Queremos um fim nobre para a humanidade, mas, com o desenvolvimento tecnológico discrepando do crescimento ético, vemos cada vez mais a proximidade do nosso fim. 

É isso que não desejamos, embora, quem sabe, já diziam os gregos antigos também, não seria melhor para a natureza se os humanos acabassem de fato, essa rebelde geração de bronze. 


  

quinta-feira, 5 de março de 2015

Franciscanas

Hoje, duas alunas tiveram a iniciativa de ajudar uma gestante que havia chegado sozinha e com fácies de dor. A despeito de eu chamá-las para discutir casos e fazê-las conhecer o resto da maternidade, o que era nosso objetivo lá, continuaram tentando ser útil de alguma forma àquela senhora.

*** 

À época do internato deparava-me com alguns franciscanos ajudando os pacientes internados nos corredores (!) do hospital em que estagiei. 

Figuras estranhas, pareciam ter emergido da Idade Média. Um residente de neurologia, em conversa informal, me falava que tinha certeza que havia algum distúrbio neurológico naqueles senhores e senhoras. Talvez mesmo em Francisco de Assis, o original. 

Já ouvi psiquiatra brincando de dar diagnóstico retrospectivo em grandes personalidades históricas. Incluía o Pai Francisco em um transtorno bipolar. O fenômeno da estigmatização ao final da vida não passava de uma auto-flagelação santificada pelo imaginário religioso de que a mentalidade medieval era repleto. O processo de conversão, despindo-se em público e torrando a riqueza do pai, um episódio típico de mania. 

A dúvida que fica é o que a medicina tem a ver com a resposta feliz das pessoas à vida? Em meio a tanto misticismo, o Pai Francisco parecia uma flor orvalhada no deserto. As mulheres, as crianças e o riso por ele eram dignificados contra toda uma cultura sombria, séria e patriarcal. A esmola não era bem um parasitismo, mas um exercício de ascese espiritual, nos diz Pierre Hadot, Jacques Le Goff. Aprender a enfrentar o orgulho, a vaidade e reconhecer na pele, com a fome e com o desprezo das pessoas o quanto essa vida é passageira e fútil. A amizade, a comunidade e o amor a Deus ou ao Deus que se manifesta no próximo doente eram as grandes preciosidades. 

Tanta gente se figurinizando de ídolos de barro por aí. Escolher uma vida franciscana pode ser uma sábia resposta para esse mundo que nos devora com novas tecnologias ao infinito. Se for fruto de um distúrbio neurológico, porque não poderia ser uma mutação seletivamente enobrecedora? Para os darwinistas vale apenas aquelas que geram melhor capacidade de procriação. Todavia, veja que o pobre de Assis se procria ainda depois de morto e para além de nossos conhecimentos. 

***

Eu impedi aquelas moças de continuar a ajuda. Vim me tocar depois o quanto aquela experiência poderia ser mais rica do que a discussão de casos que empreendia com todos. Sem me tocar me vi subjugado à velha forma de lidar com as pessoas pela medicina oficial: o diagnóstico que ilumina condutas. Menosprezei o quanto o acolhimento, mesmo com conhecimentos parcos de qualquer ciência, é uma ferramenta acessível para todas as almas, sem necessidade de qualquer iniciação. 

Muito bem, meninas!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Uma velha médica segredou-me

Ela lida com pacientes acamados há anos na rede privada. Falava, então, sobre suas primeiras experiências nestas visitas, recém-saída de míseros dois anos de trabalho na assistências pública.

A tensão era à flor da pele. Foram-lhe entregues prontuários para o estudo insuficiente das história no dia anterior. Algumas demandas eram-lhe cobradas mesmo sem ter visto os pacientes, como interpretar exames e dar uma resposta em tempo hábil. 

Oito anos de medicina deveria lhe dar alguma coragem, por que tanto medo? Não era das pessoas que sabiam fingir. A vontade de permanecer calada quando a ignorância se lhe avizinhava era uma constante. Mas, os pacientes lhe clamavam soluções. 

Eram idosos cujas doenças já haviam lhes maltratado demais.

- Saímos da faculdade com a ciência de que cada doença tem uma conduta salvadora. É o gabarito que nos dão a todo final de semestre e que não encontramos tão fácil por aí. As evidências que uma pesquisa ou outra pretende dar, como valem pouco perto do sujeito singular!

Ela viu o advento das principais tecnologias que, implantadas ou acopladas aos pacientes, permitiam mais alguns anos de vida. O que não impediu o preenchimento de tantos atestados de óbito, cujo fluxo apenas aumentou com o tempo. Porque era incompetente? Não. Porque aumentaram o número de clientes. Nenhuma  daquelas novidades venceu a principal inimiga das gentes. 

Hoje, essa senhora, cabelos grisalhos, símbolo religioso pendente do pescoço, fala do fundo de uma depressão. Pergunta-me, dobrando um origami em uma folha de receituário, se o meu gosto pela psiquiatria não daria alguma luz sobre as associações de remédios a que se aferra. Dou alguns palpites, conversa de bar, digo, de mesa de prescrição. 

Foi daí que tirei este pensamento: "Buda encontrou, pela primeira vez na vida, um raquítico, um velho e um doente e criou toda uma filosofia para enfrentar a dor dessas miragens. Nós médicos vemos esses espectros todos os dias e levamos (fingimos? necessitamos levar?) a vida como se isso não nos espantasse (não mais?)."