sábado, 22 de abril de 2017

Uma brecha essencial do raciocínio médico moderno

Introdução

Estou lendo uma reflexão de Luc Ferry sobre as implicações políticas das "Filosofias da História", particularmente a do idealismo alemão. A motivação que o levou a escrever tal ensaio, foi a da suspeita de que os totalitarismos europeus tiveram sua origem intelectual em filosofias da história de base hegeliana (acusação feita por Arendt, R. Aron, Castoriadis), cujo hiperracionalismo fazia com que a verdade fosse assumida como tão imediatamente palpável ao ponto de ser o valor principal pela qual se deveria lutar. A democracia, de outro modo, coloca a verdade política ou como inalcançável ou como impossível de se chegar se não pelo diálogo dos contrários. Nos totalitarismos, um único partido estará com a razão, e sua missão é fazer de todo o possível para assumir o poder, já que a verdade está em seu bolso. Na democracia, o pluripartidarismo é imprescindível, e os diálogos de construção das possibilidades do futuro, a única saída para os problemas de hoje.

Então, vislumbrei que essa crítica pode ser feita para o universo médico. A palavra história nos dá o ponto de encontro das temáticas.

Não conseguirei aqui desenvolver com tanta proficiência o que Ferry o fez no seu estudo sobre as Filosofias da História. Mesmo ele percebeu que havia tocado em um ponto tão crucial que precisaria de muito mais fôlego para dissecá-lo a contento. E, ainda assim, fez um trabalho ímpar. Contudo, eu devo deixar nesta página o que seriam nortes para o fôlego que algum dia eu posso ou outro possa ter para desenvolver a temática, que acredito urgente para a medicina.


Pontos norteadores


1. A crítica maior reside sobre a construção de uma filosofia da história que entende haver um Espírito Absoluto ou Razão que encarna de tal modo na história humana que a deixa passível de ser compreendida nas leis que embasam sua dinâmica. Isso ocorre em tal magnitude que, desvendada estas leis, a história se desnuda, tanto na compreensão do seu passado, quanto na clareza do presente, quanto ainda na possibilidade de tomar as rédeas do futuro. 

2. Essa visão cega o historiador para as surpresas que o presente pode dar. Reside sobre uma falácia da generalização e do reducionismo, para a qual basta um exemplo maior que a contradiga para fazê-la cair por terra. Reside ainda sobre uma ilusão da metafísica da razão que eleva esse atributo humano a um patamar de onisciência, como se o olho de carne pudesse enxergar o eterno, fotografá-lo e entender sua essência para sempre.

3. Embora a filosofia da história de base hegeliana tenha se pretendido, por exemplo, nas mãos de Marx, científica, ela destrói o exercício primeiro da ciência que é abertura para o novo, para o surpreendente, para aquilo que pode falsear a minha tese abrindo um campo inteiramente novo de pesquisa e perspectivas. Se eu, enfim, descobri as leis vigentes do universo, finda-se meu trabalho de busca, inicia-se meu imperativo de luta para fazer com que elas aconteçam. Quando na política acontece esse movimento: totalitarismo. Quando na ciência acontece esse movimento: uma ciência que serve ao totalitarismo. 

4. A medicina se funda sobre a história da doença do sujeito. Nenhum médico pode prescindir dela. E mesmo quando já não há mais sujeito animado, como é o caso do corpo morto ou da peça patológica, um mínimo de descrição história deve existir para direcionar o olhar do médico patologista para encontrar a razão da doença que se encarnou naquele corpo.

5. Existe uma tensão na história da doença do sujeito. Ela nasce destas duas palavras: doença e sujeito. A noção de doença participa da dureza do raciocínio biológico que flerta com as ciências da natureza, cujo exercício é o de encontrar padrões lógicos, e mesmo leis, que revelem o mecanismo de funcionamento a tal ponto de poder chancelar predições. O modelo é: "se isso estiver assim, então aquilo acontecerá". O conjunto de hipóteses que são assim formuladas, trabalhadas, testadas, validadas, forma um corpo de teorias tão denso e fechado que se cristaliza em um calhamaço a que podemos chamar doutrina. 

6. Quanto mais distante é, do homem, a natureza do objeto estudado, mais fácil é de acondicioná-lo em teorias que cumpram seu papel de predição de movimentos. Quanto mais próximo, todavia, mais escorregadio. É o caso do sujeito. O homem é o próprio sujeito. Estudar os movimentos do sujeito é ter que entrar no campo das ciências humanas, que cada vez mais tomam consciência da impossibilidade de projetar o exercício da predição das ciências da natureza para sua episteme, guardando, então, apenas o nobre mérito de compreender o que se passa. 

7. Estudar a doença do sujeito não é ter que prestar culto aos movimentos que acontecem no próprio sujeito? Como pode haver uma ciência da doença-que-acomete-o-sujeito sem o sujeito? O que ocorre é um exercício de dissecção da realidade em que aos poucos se vai desfazendo os laços infinitos que atrelam a doença ao sujeito até que se tenha aquela em estado puro para análise dela só. Se isso faz com que se revele certa face da realidade, de outro modo é uma revelação de uma natureza desfigurada. 

8. A clínica, que é o exercício de entender o que se passa no doente por inteiro (isto é, binômio doença-sujeito, e há época de Hipócrates ainda havia o complexo doença-sujeito-cosmos), há muito foi contaminada com o separacionismo doença versus sujeito. Raciocinamos, hoje, assim: que doença é esta que está nesse indivíduo ao ponto de eu conseguir extrair dele o nome que possa entrar no algoritmo de tratamento adequado a este nome? Quando o mais honesto com a realidade seria dizer: que doente ele é? Ou ainda melhor: quem é este que adoece? 

9. Se eu encaro a história da doença sob os moldes do hiperracionalismo que busca um Espírito Absoluto ou uma Razão que esteja sulcando sua identidade no rastro da história do sujeito, meu exercício é de buscar uma verdade que irá me munir de autoridade tal que tornará meus atos sobre o sujeito imunes a qualquer censura. Um único partido para decidir o rumo da política do corpo a ser tratado. 

10. De outro modo, com a teoria da doença na mão, estarei prevenido contra qualquer milagre do Ser (expressão heideggeriana, adotada também por Arendt) que venha a brotar no sujeito. Milagres esses que, por definição, desbancam qualquer lei vigente. 

11. É um exemplo cotidiano o estudo de casos de pacientes onde as identidades deles, suas histórias de vida, são grandemente ignoradas, e iluminados são os pontos-chaves que fazem a junta médica reconhecer, como num jogo, a face da doença em cuja doutrina médica há um protocolo de intervenção para ela. O modelo infectológico de raciocínio, na busca pelo agente etiológico, com os sucessos de seus dias áureos dos primeiros antibióticos, tornou esse modelo de pensamento ainda mais potente.

12. Contra todo esse assentamento de bases do edifício da crítica que gostaria de erigir, a medicina baseada em evidência pode se insurgir dizendo: "contudo, funciona". Nos dias de hoje, um conjunto de evidências, não menos robustas, vem apontando que - principalmente no campo da psiquiatria, onde a doença se mistura ao sujeito no que consideramos, atualmente, o mais sagrado de seu ser - a eficácia dos medicamentos é repleta de controvérsias, vieses, metodologias de averiguação falhas. 

13. Não vamos ignorar que há casos, principalmente os agudos de novo, e não os crônicos agudizados, em que a doença parece recente e facilmente extirpável. Contudo, os crônico-degenerativos, que é o que vem acometendo as populações em envelhecimento, tornam o processo de adoecimento um complexo semelhante aos das doenças psiquiátricas: a doença mistura-se na forma de existir do sujeito. 

14. A medicina da doença pode dar conta das singularidades dos sujeitos? Não estaríamos exercendo, há séculos, uma medicina totalitária, submetendo-os, pelo suposto bem deles, a tratamentos hediondos que inserem em seus corpos efeitos colaterais mais devastadores do que a promessa de tratamento pode compensar? As pesquisas que mostram acréscimos de sobrevida não estariam negando a quantidade de Ser que estas pessoas tem? As sombras que o lendário Ulisses encontrou no Hades, em sua Odisséia, eram plenas de sobrevida, contudo, Aquiles, portador dessa imortalidade sombria lamenta que preferia ainda ser mortal e estar entre os seus cultivando suas terras. 

15. Claro que as pessoas não são dóceis para esta medicina. Procuram milagres. Muitos são os intermediários: não apenas santos, padres ou pastores, mas xamãs, cirurgias espirituais, sessões do descarrego, de desobsessão, possessões demoníacas, sangrias sagradas, alquimias, práticas corporais com fundo espiritual, práticas ditas bionergéticas, práticas comunitárias, etc. Qual o poder destas práticas de provocar milagres do Ser, enviesando por completo os resultados das pesquisas da medicina baseada em evidência? Não há ciência preparada para analisar estas práticas. Elas seguem conquistando os sofredores que silenciam a respeito delas para os médicos. São estes fenômenos silenciosos que são acolhidos no ventre do sujeito e gestados no ponto cego da ciência que fazem dela um dos pontos de vista mais ingênuos que já se firmou na humanidade para entender o próprio ser humano. 


16. O surgimento da ciência moderna, fazendo-nos crer que se tratava de um movimento contra a superstição dos outros tipos de busca de sentido da vida que já se havia empreendido na humanidade, faz-nos ver que ignorou pontos essenciais do ser humano que as outras abraçavam com maestria, haja vista, tudo o que toca no assunto: dos deuses, dos símbolos, dos totens, do sagrado, das múltiplas dimensões engolfando-se umas as outras, do mágico, do sombrio, do demoníaco, da possessão, dos arrebatamentos, dos êxtases, da clarividência, em uma palavra, do transcendente que copula com o imanente, de Urano sobre Gaia. 

17. Não é o caso de, capitulando de toda essa busca por respostas, considerar toda resposta possível. Mas sim, de buscar uma ciência (ou qualquer novo nome que queiramos dar a essa atitude humana) que assuma nossa impotência radical de entender a totalidade do Real, e aceite os milagres que dele brotam. É a primazia do estranhamento sem perder a vontade da ação. Como escapar da metafísica da razão totalizadora/totalizante e se inserir no reino do ente que se encontra a deriva no mar do Ser?