sexta-feira, 31 de março de 2017

Com a vida em jogo

Com a tireóide sacada do pescoço, os desastres continuam um ano depois. As paratireóides não querem funcionar direito. Olha que basta uma presente para suplantar todas as que se foram. No meu caso, tenho três das quatro, e, todavia, elas sentem falta da quarta.

Tenho feito suplementação dietética de cálcio, mas o último exame não mostrou resposta. É como se elas estivessem ainda, um ano depois!, atordoadas. E me deixa atordoado, também. Lá podia imaginar que um íon tão miserável seria tão importante no corpo! A fadiga quer dominar. No karatê, treinávamos andando com alguém nos segurando por uma faixa na cintura, a fim de adquirir força no centro corporal. Na natação, acoplávamos um paraquedas pequeno à cintura para nadar contra a resistência, adquirir força de braçada. Sem cálcio, mas tendo os hormônios tireoidianos e noradrenérgicos no nível normal, é como seguir a vida com essa resistência. 

A medicina ocidental oficial se tornou grande no diagnóstico. Ela descreve com maestria todos os sintomas e associa bem o conjunto sindrômico a um nome específico de uma entidade patológica abstrata qualquer, entre epônimos e radicais gregos. Ela é a rainha da taxonomia das doenças. Mas, está longe de saber nos devolver o equilíbrio. 

Após a suplementação do cálcio, não dando certo, terei de suplementar novo hormônio que pode me conduzir para o extremo oposto, a hipercalcemia, com risco de formação de pedras renais cuja dor é tida como das maiores que o corpo humano pode sofrer. Por mais que nossa tecnologia bioquímica consiga reproduzir os compostos humanos, nada se equipara ao mecanismo fino de autorregulação que o corpo consegue empreender, daí os riscos dos extremos, como se estivesse na vertigem de uma viagem em mar aberto.  

Por isso, depois de um ano e meio estudando homeopatia, estou colocando o pescoço em sua guilhotina. Os artigos de grandes revistas a condenam? Não acredito em artigos que não nos oferecem nada melhor em troca. Quer, a ciência oficial, que nos entreguemos inermes às suas experimentações que, para cada efeito terapêutico de uma droga, mil colaterais se avizinham. Os achados em um punhado de pessoas quase sãs são "a prova suficiente" para a circulação de tal ou tal medicamento em larga escala. Anos depois, alguns são retirados às pressas por causa dos desastres.   

A lógica homeopática se encaixa no que ando sofrendo. O vitalismo explica os meus movimentos mórbidos mais do que o mecanicismo newtoniano. 

Ando agitado porque é o choque de dois impérios que presencio aos meus olhos. E, no meio do tiroteio, tenho de escolher a que líder seguir. Queria não tomar o cálcio a fim de estimular as paretireóides tanto que o impulso do remédio homeopático as fizesse despertar, mas de outro modo, é o medo da lassidão, da convulsão, da tetania em último caso. 

Se é para sofrer aos poucos caindo de degrau em degrau no abismo dos algoritmos alopáticos, por que não dançar nas teorias hahnemannianas das doenças crônicas? 


quarta-feira, 22 de março de 2017

Calma e Kayros

Carta ao meu amigo aprendiz

 

Querido, 

Só mais uma lição depois de um dia inteiro de aprendizado. Essa é daquelas para pensar por muito tempo, e prestar atenção qual o caminho para a virtude. 

Aquele senhor estava suando e em desespero. O desespero de nenhuma situação pode lhe contaminar. A busca pela assepsia também reside aí. Não é um pedantismo, longe disso. Mas, é que o desespero te tira da sobriedade, em cujo leito deve repousar seu raciocínio. 

Como você vai poder ajudar qualquer paciente que lhe venha se não parar para raciocinar em cima de um diagnóstico que te conduza em um caminho terapêutico possível? E, quero que saiba, que o diagnóstico é um campo de batalha na sua cabeça. Parece, às vezes, um jogo de xadrez. O desconforto do paciente move uma peça, você outra, e assim vai. É preciso respiração, presença plena, foco, olho no olho do oponente e decisão. O desespero não ajuda. 

É imperioso monitorar? Ok. Mas, o que você vai conseguir afobando a equipe? Você lança a convocação, as pessoas se alertam, você faz propostas, cada um vai acordando para o alarme em um tempo próprio de cada um, vão aderindo ao seu fluxo de comando gradativamente até que uma equipe está em harmonia de ação. Você tem uma equipe coesa? Haverá mais rapidez para a resposta. Você tem um protocolo claro e treinado? Haverá ainda mais rapidez. Você tem um magnetismo pessoal imponente? Haverá mais engajamento aos seus comandos. De todo modo, para conseguir a coesão, a rapidez e o engajamento, é preciso tempo e calma. 

Vou falar um pouco sobre o tempo. Os gregos entendiam que havia uma sub-dimensão do tempo que não era simplesmente a sucessão das coisas, mas era também as coisas acontecerem no momento oportuno. Onde podemos enxergar isso naquela emergência? 

O paciente estava sudoreico e em desespero? Por quê? Uma cadeia de eventos deveria ter se processado nele para quedá-lo àquela condição. Perdemos essa cadeia de vista e ela nos tomou de surpresa? Calma. Outra cadeia de eventos está se processando no momento da crise, e eu preciso captar o ponto em que posso atuar. Não conseguirei chegar mais rápido em lugar nenhum se eu não souber onde chegar. Não é rapidez, vê? É andar. Mas, por vezes, é parar e olhar. 

Poucas pessoas sabem, mas nossa ciência deve muito mais à astronomia do que à física. Os físicos tomam seus objetos de estudo e os controlam em laboratório. Os astrônomos contemplam seus objetos. Os físicos podem controlar variáveis. Os astrônomos tem que calcular o tempo certo da observação. Apenas nessa janela de oportunidade é que ele vai ter as condições necessárias para captar todos os dados possíveis a fim de propor explicações, referendando ou refutando o que já vinha acalentando como hipótese na alma. Se eu perco esse kayros, devo esperar o próximo. Para aquela cadeia de eventos, a oportunidade se foi, mas outra cadeia de eventos segue na órbita do que está acontecendo. É preciso estar aberto para captá-la. Seu desespero não vai fazer com que o astro acelere seu curso, e pode ser que esqueça, desvairado que estava, qualquer instrumento essencial para captar o momento. 

Arrume todos seus equipamentos cognitivos, esteja presente, poste-se numa posição de observação privilegiada e siga o instante.

Veja que a saturação dele estava um pouco baixa, que a frequência estava aumentada, que a pressão estava alta. Ainda não havia monitorização cardíaca, mas um membro da equipe estava indo em busca, e o outro havia tido a ideia de aspirar a traquéia, pois era sabido que se tratava de um senhor com muita secretividade e dificuldade de expeli-la. Estávamos pensando em infarto, mas tudo não passava de uma rolha de secreção. Ambas as hipóteses contemplavam a tétrade sudorese profusa, saturação baixa, freqüência aumentada, pressão alta. Mas, enquanto nos preparávamos para o pior, a aspiração traqueal mostrou-se suficiente. Se tivéssemos desesperado a equipe, impedido o movimento de cada um na sua órbita, conforme o impulso profissional individual, tentando submeter ao máximo todas as variáveis à nossa soberania, teríamos começado a dar anti-agregantes plaquetários a um paciente que estava se sufocando. 

Arrume todos seus equipamentos cognitivos, esteja presente, poste-se numa posição de observação privilegiada e siga o instante. Você não conseguirá enxergar nada se não souber para onde olhar. Não irá chegar em lugar nenhum se não souber para onde está indo. O tempo é cheio de oportunidades de ouro, é preciso calma para captá-las.