quarta-feira, 20 de abril de 2016

Acaso matemático

Estive ontem entregando meu pescoço ao exame daquele que vai me operar. A cura daquele senhor parece se operar desde o momento da sala de espera. Apesar de pagar particular, para antecipar a agenda, tive que compartilhar o espaço com dezenas de pessoas que, a maioria, não ligavam muito para o desconforto, já que estavam lá "pelo médico e não pelo espaço". 

Acredito que um somatório de resultados positivos nas mãos daquele cirurgião o fizeram ter fama suficiente para que nele fosse depositado fé. Dizem que entre os pagantes há os trabalhos gratuitos. Meu finado pai já exercia algo assim. Quem podia pagar acabava financiando a margem de caridade que aquele médico estava livre para ofertar. Mas, são boatos. Valem, de todo modo, para aumentar o índice de santidade e, consequentemente, o de fé. 

O fato é que valeu a pena o esperar. Jeito dócil, aperto de mão firme, a voz dele como que visita gentilmente o ouvido. Depois de ter baixado o veredicto de que era caso, sim, operável, me convence sobre não adiar tanto o procedimento. Depois fala sobre a estatística das falhas. Cerca de um por cento das operações podem cursar com "tal coisa". 

Bem que ele poderia ter falado que em um por cento das operações dele aconteceu "tal coisa". Mas, entregou o risco da operação ao deus da estatística. 

A medicina tem esse deus muito recente: a epidemiologia. Ela passou a governar nosso olhar da clínica com certa tirania. É que sua determinação acaba por nos acertar a todos. 

Certa feita, um amigo devoto dos acessos centrais (procedimento de urgência de alta complexidade), errou pela primeira vez o alvo da subclávia que apontava e perfurou o pulmão. Lamenta: "Caí na estatística!"

É como se nossos atos estivessem submetidos a uma lógica que nos escapa. São mais determinados do que poderíamos imaginar. Por maior que seja a curva de aprendizado que tenhamos, nossa imperfeição esbarra no erro, na falha, no efeito colateral, que acreditamos poder bem predizer na população das freqüências. 

Não é um acaso, pensando no acaso como ausência de causas, sorte, capricho de um Senhor perverso. É um acaso no sentido de não conseguirmos ainda estabelecer a causa, pois são infindas. 

O grande arqueiro erra grosseiramente. Por quê? Ora, houve a ventania, um raio a lhe cegar escapulido do sol em um espelho qualquer, um escape de arritmia do coração bom, uma convulsão parcial simples e que nunca mais terá. 

Mergulhamos na epidemiologia das coisas porque acreditamos, no fundo, que o universo é matemático e passível de se revelar, nu, em suas conexões mais íntimas, para os olhos do espírito. Sem perceber, acreditamos em uma realidade que nos transcende, que é lógica e que é comunicável. Acreditamos em tudo isso que é da ordem do espírito - e boa parte do médicos são ateus. 

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