É assim que encaro a medicina. Odeio (esse é o verbo) conhecimentos que não podem ser disponibilizados para o mundo inteiro, mas apenas para alguns iniciados. Se algo não é passível de ser transmitido, era melhor que tivesse ficado calado. O problema é que tudo é passível de transmissão. Essa é a nossa missão de seres vivos desde os procariontes: passar informações adiante. Mais dia, menos dia elas são distribuídas em massa. E como essa era de internet facilitou isso!
O que venho falar aqui, na verdade, é sobre um lamento que a professora soltou:
- Estas matérias não deveriam ser passadas para vocês nos primeiros dois semestres da faculdade, porque são muito complexas!
Ela falava sobre assuntos que geralmente são considerados inúteis pelos alunos e cuja abordagem em provas de múltipla escolha são completamente imbecis (essa é a palavra). Senão vejamos:
Em relação à definição e descrição do território de abrangência, assinale a alternativa CORRETA:
A) [A pessoa escreve alguma pegadinha]
B) [Mais outra pegadinha no meio da frase]
C) [Mais uma...]
D) [Esta é a opção que o autor da questão quer que você marque] O território é um espaço vivo de relações e de produção de identidades, subjetividades, crenças e valores, por isso deve ser decifrado como espaço dinâmico, produto de uma dinâmica social, possuidor de sujeitos sociais, conflitos e interesses.
Esse conceito aí foi elaborado por um dos brasileiros mais eminentes que já passou pelo século XX. Quer ter uma ideia do pensamento dele, assita a esse documentário:
Agregador de vários títulos acadêmicos aqui e fora do Brasil. Admirado e estudado internacionalmente. Aí, vem um estudante do primeiro ano da faculdade de medicina, assiste uma aula sobre isso e diz:
- Óbvio que é essa a resposta!
E sai considerando os temas da Atenção Primária questões de sensatez, um psicoteste à la provas para receber carteira para dirigir. Desconsidera a grandeza que foi o homem ter enxergado o território como um produtor de subjetividade. Só essa parte da frase já daria um livro de discussão e aprendizado.
Por que tantas pessoas que saem do seu interior, deixando os fantasmas de suas histórias para trás, a fim de buscar vida melhor na capital tem mais risco de desenvolver transtornos mentais, somatizações, dores inexplicáveis, intratáveis? Porque sua subjetividade ficou no território de onde veio. Porque aqui ela está mutilada, sozinha (por mais que haja alta densidade demográfica), sem chão. Por que nas favelas há mais doenças? Por que são porcos? Não. Porque o território deles está em plena guerra de interesses onde são jogados os espojos da civilização que mora bem. Meu Deus! Por que falamos essa expressão "fiquei sem chão" quando perdemos o norte? Porque somos seres telúricos por excelência. "Já morei em tanta casa que eu nem me lembro mais", mas qualquer dia eu volto a morar "com meus pais". Ainda que seja no cemitério, se os latifundiários permitirem eu ter um palmo de terra para guardar meu caixão...
Estudar sobre território, políticas públicas, gestão de recursos, educação popular são de uma complexidade que não cabe em questões de residência. Têm de ser vividas, sentidas na pele, degustadas com o povo. É pra quem viveu muito e sofreu um pouco. Percebeu que a maior parte do que a gente estuda na faculdade é quase nada para melhorar a saúde global da população. Para quem tentou tratar diabetes em um pai de família desempregado cuja pequena felicidade da vida era o bolo com que era recepcionado pela mulher como se fosse um príncipe.
Allan Kardec, meu mestre de há muito, a sua palavra reverbera neste jovem espírito: "É preciso alguns anos para formar um médico medíocre e uma vida para formar um sábio."
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