quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O legado cristão para a visão de saúde de nossa cultura

Dentro da medicina, desde o início, uma das matérias que mais nos encanta é a farmacologia, isto é, o estudo de substâncias que podem tratar o mal das pessoas. 

Ela funciona relativamente bem. Se perde na história da medicina o tempo em que usamos elementos estranhos ao organismo humano para cicatrizá-lo. O desenvolvimento tecnológico acompanhado do aumento da nossa capacidade em demonstrar resultados com intervenções específicas ajudou a canonizar os fármacos. Todos acreditam, em maior ou menor medida, no poder das drogas receitadas pelos médicos. 

A religião, que antes era associada com a arte de curar o corpo além de salvar a alma, ajudou a chancelar esse tipo de crença no nosso meio. A salvação que vem de fora: de um xamã, de uma erva. 

De algum modo, o cristianismo muda isso radicalmente, embora não tenhamos assimilado por completo essa radicalidade. Cristo nunca curou ninguém com matéria, salvo em João 9:6 quando se vale de certa preparação de saliva e areia para dar luz à um cego. E muito embora ele devolva para a pessoa a responsabilidade da própria cura pela fé dela, o que fica é que sem ele nada teria acontecido. Jesus foi o grande canalizador das curas, ou melhor, o divino autor delas. Ele permitiu, promoveu, senhoreou-as. É isso o que o torna, na visão do cristianismo oficial, o salvador das pessoas, e não a matéria, e nem nenhum outro que se venha dizer Cristo. 

Os movimentos gnósticos pregam, grosso modo, um Jesus que havia mostrado ao homem como ele mesmo poderia se curar. Trazem a salvação para o chão, colocam-na na mão do próprio homem. Isso deu combustível não só para o cientificismo (a razão e o método que conseguirão enfim a cura dos males), mas aos psicologismos de toda ordem (o homem que com o exercício de um bom pensamento pode se curar). 

Estou simplificando grandes veias históricas para ficar mais claras as relações que costuro. As grandes dicotomias que temos aqui são a capacidade do homem de se auto-salvar ou de apenas poder ser salvo por outro. O que disse até agora é que o cristianismo católico veio alimentar esta última posição, e os ditos gnósticos, a primeira.

A ânsia das pessoas de se medicalizarem para sanar suas angústias guarda laços com este sentimento religioso de espera por uma solução fora de si. O movimento de crítica contra a medicalização desenfreada vem apontando soluções gnósticas para o problema. Acabam dando margens para a possibilidade de um saneamento final do desequilíbrio gerador de doença através de múltiplas respostas que utilizam apenas os elementos terrestres como legítimos salvadores das pessoas.  

O que há por trás da mensagem cristã, em verdade, é que apenas a terra não basta. Jesus morreu tentando salvar as pessoas, e foi sua morte - e ressurreição - o mistério salvador. Ao contrário do que muitos pensam, essa posição é de uma grandeza ímpar. 

Vejamos a falha de outras respostas.

Não raro encontramos pessoas que se desfazem frustradas em buscas de cura. Os médicos e os métodos se sucedem falidos. Mesmo medicinas alternativas caem por terra. Ao final, restam marcas de uma luta inglória, e a sede de um resultado nunca alcançado. Assim são todos os casos refratários, de diagnósticos incertos, de efeitos colaterais mil. Quando tudo esboroa e a doença ganha imensidão, a visão da morte como o selamento da derrota é quase inevitável. 

Para o cristão, há um projeto de vida na dor: encontrar a vontade de Deus que não está sendo cumprida. Os remédios e as medicinas podem fazer parte desta vontade. O mais importante não é eles, mas a lição que deve haver por trás. O aprendizado é guardado no Espírito. Prepara o encontro definitivo com a salvação. Se, depois de tudo, o mal persistir, a morte vem como selamento do mesmo. Após três dias, eis a promessa encarnada em Jesus, a vida eterna ressurge de qualquer sepulcro. A morte não é o fim do homem, mas dos males. A dor é uma purificação. Cada momento pode ser o de receber o toque do Messias. 

Essa visão devolve ao indivíduo o sentido de uma busca que dialoga com uma perspectiva cósmica e eterna. Não o esmaga com a responsabilidade de ser o grande artífice da sua cura, que pode ter infinitas causas que escapam dele completamente. Não o engana com pílulas ou gotas ainda muito imperfeitas para englobar a complexidade de uma história inteira de dor, não raro de raízes plurigeracionais. Não estaria errado o médico dizer que o remédio é apenas um tempo que se está conseguindo para que uma reorganização maior se instale. Busca-se o tempo de Deus fecundando o homem. Se não existir essa Vontade Benevolente querendo se instalar no homem, tudo é vão. O que pode qualquer vitória química diante do universo inteiro desmoronando sobre nós? Um vento do cosmos nos desfaz, pós.

O tópico mais urgente desta era é o resgate de uma história que nos dê sentido diante deste tudo que se desobriga da humanidade. "Se os mortos não são ressuscitados, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos."  





quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Obstáculos da medicina para a mística

Semeados em núcleos muito especiais pela humanidade a fora há grupos de indivíduos que deixam manifestar, ao seu redor, fenômenos que intrigariam as mentes cotidianas. Tachamos estes núcleos de esotéricos, ocultistas ou místicos. O que há de comum entre estas três palavras é o caráter íntimo das práticas, antípoda da nossa sociedade de espetáculo

O que denominamos ciência - mal suspeitam os cientistas - é filha dileta da sociedade do espetáculo. Esta sociedade tem por dogma: "tudo o que é bom deve ser compartilhado, da melhor maneira possível". Desde a fundação deste mandamento, nosso céu é quando estamos sob o foco, no palco, na evidência. Evidência é o nome que a ciência usa para a verdade que pode ser vista por qualquer um. Uma verdade só pode ser aceita se o método utilizado para nela chegar puder ser reproduzido por quem quer seja. Reprodutibilidade em massa é um dos deuses que a ciência - e as indústrias - mais adora. 

Nos círculos esotéricos, esta ideia é risível. Um fenômeno místico só pode ser reproduzido por um iniciado que chegou em certo grau de merecimento. Primeiro há a iniciação, que imprime na alma do pretendente uma experiência de pertencimento sem igual. Depois há os estágios de ascensão, desafiadores cada um ao seu modo, que vão permitindo o acesso a conhecimentos e habilidades gradativamente. Mais adiante ainda, não é pelo simples fato de se ter passado em uma prova que o merecimento nasce, não estamos na noção modernista da autonomia do homem para se construir. É preciso, diz-se, de uma certa luz e predisposição para chegar ao topo. Não é possível uma reprodutibilidade em massa disso. Entendem que nem todos estão preparados para certos fins. A distribuição dos dons espirituais é uma injustiça dos deuses. As provações são antes para selecionar do que para preparar.  

Em nenhum destes lugares há transmissão das possibilidades de se fazer milagres sem um caminho de entrega e devoção para o mistério. O senso crítico é o primeiro que fecha a alma para essas possibilidades. O que demos para chamar de ciência oficialmente aqui no ocidente não vive sem o senso crítico, isto é, sem o pressuposto de que nada é verdade até que se prove o contrário. Lá, o primeiro ato do discípulo é baixar inteiramente a guarda. 

Ainda me lembro de um grande professor de medicina nos dizendo que adorava quando alguém o contrariava, porque é assim que a ciência cresce. De fato, se tratamos desta ciência a que venho me referindo. A verdade é um ser anônimo e impessoal construído pelo embate de dois desejosos de formular a melhor definição que a contenha. A verdade para o esoterismo é um encontro com ela. Alguns iluminados encontram-se com ela mesma. Outros encontram-se com ela através de outros iluminados. Para estes, a palavra de ordem é "cala e sente". Uma obviedade se impõe, e dura. Para aqueles, seria "defenda-se". Uma autoridade se conquista, e é sempre passageira.

Então, vem a ciência e diz que nada do que se alardeia acontecer nos círculos esotéricos é real, porque para ela apenas pode ser real o que consegue reproduzir segundo seus critérios. Contudo, estes critérios começam, desde o primeiro passo, quebrando as premissas exigidas por estes círculos. Não dá! Não é possível a ciência acessar qualquer verdade sobre a mística, sobre os fenômenos das ciências ocultas, sobre o que se ensina na sombra esotérica sem deturpar, deformar, reduzir. 

Se alguém quiser nascer e crescer para essas experiências, deve rezar para encontrar uma boa escola iniciática guiada por um grande homem. Há uma multidão de charlatães. Contra eles a ciência é válida. Mas, a favor dos grandes homens, ciência demais apenas atrapalha. A prova negativa de um fenômeno, não prova positivamente a impossibilidade dele existir. Nunca é demais lembrar isso. 

Se quiséssemos construir uma medicina para lidar com os fenômenos de cura mística, deveríamos reconstruir toda a forma de olhar a realidade que veio se fermentando desde Platão, escaldada entre os escolásticos, recheada pelos modernos. A poesia deveria ser adorada como doadora de sentido real, e não simbólico. O silêncio e a não-defesa de qualquer item deveriam ser um (não) discurso acadêmico legítimo. Meditar no telhado dos prédios em detrimento às salas de aula nele contidas não deveria escandalizar. Não conseguir dançar segundo os ritmos da natureza ou na busca de entender o corpo do outro deveria valer reprovação. Sem isso, apenas para começar, sobre esoterismo, ocultismo ou mística nada poderemos dizer.