Estou com dois amigos próximos se formando em medicina. Depois de seis anos de preparação estão com medo de enfrentar as doenças que o trabalho traria. Conversava com minha esposa acerca do mesmo sentimento que nos tomava à época.
Não quero falar que vai passar. Não passa. Um professor emérito dizia: "paciente-livro-paciente". Mas, o medo não cessa. Adquire-se uma técnica de deslizar pela realidade. Alguns padrões de raciocínio e de conduta são enraizados. O medo sempre fica.
Não podemos deixar de viver porque ele está presente. Ele nos protegeu de muitas quedas. Salvou-nos de grandes apuros. Protege-nos, mesmo, de ferir as pessoas com a exposição impensada de tudo o que tem dentro de nós.
De fato, seu excesso, congela. Sentia vontade de não sair do sofá. É um momento de crise. Depois de seis anos de faculdade, apascentado pelos preceptores, um dia, você está sozinho.
Cinquenta por cento das procuras ao médico poderiam ser resolvidas com atos simples, conhecimentos básicos, orientações, nortes (dia desses um senhor de oitenta anos aparece à minha esposa ignorando que beber refrigerante no café-da-manhã prejudica o controle da diabetes). Se esmiuçássemos, mesmo a estes cinquenta por cento, poderíamos fazer mais por eles munidos de conhecimento, experiência e tempo. A rotina não vai permitir se aprofundar na consulta. Mas, a rotina também salva. Os padrões, os algoritmos, os protocolos, os manuais limitam a compreensão de cada caso, mas permitem o início do acolhimento.
Nessa época de redes, as hiperconexões vem permitindo a resolução de dúvidas cotidianas à beira da mesa que antes levaríamos para casa a fim de estudar e dar uma resposta daqui a uma semana, um mês. O medo se dilui na rede. A pesca aos amigos já não é crime, mas imperativo.
O que mais me salvou depois de formado foram os amigos que formei. E isso nem estava no currículo: aprofundar amizades. Eles acolhiam minhas dúvidas como se fossem deles. Por vezes, sentia-me legião ao lado do paciente. Um destes amigos, que sempre foi meio bruto, respondeu tudo o que questionei. Era o que melhor sabia daquilo, e que melhor poderia me explicar. Pedi desculpas pelo incômodo, no que me devolveu: "Por favor, você não sabe a importância que tem para mim lhe ajudar."
Todavia, metade das vezes estará sozinho. E mesmo no sentimento de equipe, cada gesto seu é um protagonismo solitário. Um paciente está no primeiro andar, o seu parceiro, no térreo. Há uma intercorrência ao seu lado. Ao lado dele, também. É o momento de acreditar em si, e naqueles seis anos. O tempo será seu mestre, e o giro da terra provoca as estações. Às vezes está sereno, outras, temporal. Algumas doenças revisitam a cidade, abarrotam as instituições, prejudicam a todos.
Alguns não suportam a urgência dos males, e buscam se resguardar na meditação da clínica. Não tem como. A vida anda de montanha russa. Cedo ou tarde o que é imperioso e inadiável lhe cai nos braços.
No mais, foi gratificante, ao início, ter pacientes entendendo meu raciocínio lento (leia-se: cauteloso) e dizendo: "ele demora, mas é bom!". Ou ainda: "me disseram que sua consulta é psicológica". Seja lá o que isso quer dizer.
Aqui pelo Ceará, porque as engrenagens do sistema de saúde ainda engatinham, nem tudo o que você sabe poderá ser colocado em prática. Dormir com casos mal resolvidos na consciência, boa parte será porque não houve como os resolver. Estava além de suas forças. Importa, pelo menos, tê-las empregado conforme podia.
Não saia de seu psicólogo, se o gasto com a família que formar ainda o permitir. Sair com os amigos para sempre e inevitavelmente falar dos casos alivia um pouco, mas geralmente não é lugar para chorar.
Um pensador de que gosto muito falava que "cinco, seis, sete anos são necessários para formar um médico medíocre, e a vida, um sábio." Medíocre, no sentido de mediano. Sábio seria no sentido de suficiente. Eu, hoje, interpreto como sábio no sentido de consciente. Consciente da condição humana, da nossa fragilidade, do nosso desequilíbrio irremediável, irredutível, de que nunca teremos o último remédio, a última resposta. Daí, o medo sempre espreitar. Contudo, na sabedoria, ele não vai ser mais um sentimento temido, mas um irmão. Velhos, sentaremos com ele num balanço, acariciando os cabelos de quem amamos, sabendo que pode partir logo mais. Ter consciência da nossa impotência não nos redime de lutar, nem da nossa finitude, de viver.
Sejam bem-vindos ao corpo místico hipocrático.
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