sábado, 26 de maio de 2018

Intenções da aula sobre Saúde e Espiritualidade

Fui convidado para dar uma aula sobre Saúde e Espiritualidade ao curso de ciências da saúde da faculdade em que leciono. O evento maior tratava da Saúde das Minorias. Eu tinha um mundo de coisas para falar. Há muito meus estudos se direcionam para tentar construir um discurso que torne academicamente válido as abordagens acerca da espiritualidade. E, uma vez tendo me formado em medicina, unir a profissão com o tema. O que vem se evidenciando uma tarefa inglória. 

Contudo, esforços dos últimos anos estão logrando este êxito, aqui no Brasil isto é pelo menos, de forma mais consistente, há vinte anos. Acesse aqui este link* para ler um livro importante no assunto.

Nesta postagem quero registrar as intenções da aula que dei, o que pode servir também de ramificações para aulas posteriores. Pretendo mesmo disponibilizar um material inteiro em vídeos curtos na minha página do Youtube. Aqui estão:


  • Ao expor as filiações religiosas que se apresentam em minha história de vida logo à introdução quis que soubessem que ninguém fala de lugar nenhum. A boca fala do que o coração está cheio. O coração está cheio daquilo que vivemos. 

  • É verdade que existe um movimento forte no universo anglo-saxão que estuda a temática, tendo Harold Koenig (1951-) como um grande expoente conhecido em nosso meio. Sua abordagem, como o faz aqui no Brasil o professor Alexandre Moreira-Almeida (1974-), tenta conciliar saúde e espiritualidade com pesquisas que utilizam a metodologia científica pragmática, se valendo muitas vezes de ferramentas quantitativas para provar seu ponto. Esse caminho não é o meu, mas importa saber que ele existe.

  • Dividi a aula em três partes que são quase que dialeticamente conectadas. A dialética é um tipo de abordagem que, confrontando o cartesiano, quer devolver a dinâmica do espírito para a ciência. Hegel (1770-1831) foi o principal nome desse movimento. Não tive tempo de mostrar como a minha divisão da abordagem do tema já era, em si, uma abordagem do tema. Saí do "espírito confuso com a matéria", passando pelo "espírito contra a matéria", chegando em "o espírito para além da matéria". Como falei, vou fazer um vídeo para cada um desses pontos esclarecendo melhor. Desde já cabe entender que essa forma de fazer crescer a argumentação flerta com a alquimia, esta ciência que, como se sabe hoje, influenciou sobremaneira o filósofo alemão Friedrich Hegel, e todo o romantismo alemão. 

  • Na parte "o espírito confuso com a matéria", trouxe as vivências e os estudos de um psicólogo que venho estudando intensamente: Juan Alfredo César Müller (1927-1990). Evocando diretamente suas reflexões, estudos e descrevendo algo da sua prática, iniciei, assim, a exposição com o espírito (da questão) confundido com a matéria (do cotidiano). Juan Müller, se fosse médico, eu diria que teria sido o Paracelso moderno. Talvez ele tenha sido mesmo, tanto mais quanto menos era médico, mas um psicólogo que se utilizava de uma medicina desprezada, a homeopatia, logrando o êxito da cura em vários pacientes, segundo testemunho de alguns luminares que com ele conviveram. 

  • Falei logo no início de experiências parapsicológicas e de comunidades alternativas como a de Findhorn para ilustrar o tema caro ao Dr. Juan Müller, a da psicomagia. Com um tema por assim dizer, inteiramente alienígena ao discurso acadêmico atual, mas extremamente presente na prática desse psicólogo acredito ter provocado vertigens na plateia que, pela novidade radical do assunto, deve ter estranhado tantas informações.

  • Na parte "o espírito contra a matéria", é o momento que, sem me desviar do tema da psicomagia, trago o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) para contra-argumentar o poder universal desta potência humana. Este senhor traz um conjunto de experiências de desmascaramento de xamãs que o levaram a concluir que, já que o xamanismo, por outro laudo, provocava várias curas exitosas, deveria fazê-lo por compartilhamento de uma estrutura simbólica que comunicava o poder terapêutico ao paciente membro da comunidade. Aqui representei a primeira parte da contradição: quando a matéria (científica) se volta contra o espírito (dos xamãs). Contudo, ainda assim, ela aceita a sua eficácia em parte. 

  • A segunda parte da contradição é quando o espírito (das religiões) se volta contra a matéria (a tentativa de materializar o espírito). Essa discussão parte da pergunta "quem cura?". A princípio, é importante frisar que cura é uma categoria que só se pode trabalhar em âmbito metafísico, ou religioso, pois para falar de curar apenas é possível se considerarmos o todo. Assim, nenhuma ciência cartesiana tem a possibilidade de abordar o tema, nem pode prometer tal coisa, haja vista, trabalhar com um método fragmentário e fragmentador por natureza. Vou deixar essa questão em um ponto isolado, pois merece uma explicação à parte. 

  • As respostas para a pergunta levantada no item anterior envolvem dois elementos opostos. Quem cura? [1] Deus (ou o círculo da divindade) ou [2] o homem (ou o círculo dos mortais). As várias religiões ou concepções de mundo se dividem por estas respostas. Senão vejamos: é Deus (judaísmo, islamismo), é o homem (materialismo, psicologismo), é o homem que pode o divino (humanismo), é Deus que se fez homem (cristianismo, hinduísmo), é o círculo divino ou angélico que age pelo homem (as diversas concepções mediúnicas da relação com o sagrado), é Deus que floresce no homem (hermetismo), é o homem que é Deus e não sabe (gnose), é o homem que é Deus e não tem consciência disso (budismo). Porque o fundamento de cada uma dessas concepções são radicalmente diferentes, uma não pode aceitar a veracidade da outra sem se destruir. Quando muito podem assimilar em sua complexidade a possibilidade do fenômeno do outro e suas simbologias, adapatando-as organicamente na própria identidade. Eu não consegui aprofundar este tema na exposição tamanha a complexidade do mesmo, o esgotamento do tempo e o cansaço da plateia. 

  • A última etapa foi "o espírito para além da matéria" ou "o religioso depois da religião", em uma superação dialética. O objetivo era esboçar possibilidades de assimilar o espírito (tudo o que mais ou menos englobamos neste conceito nebuloso de espiritualidade) na matéria (do contexto clínico). Isso implicaria, como acontece no modelo dialético, ultrapassar a contradição da etapa anterior (o espírito contra a matéria) sem desperdiçar a experiência de qualquer um dos polos. Nesta tentativa, duas correntes de pensamento se evidenciam na história da filosofia. A primeira, spinozista, que entende ser a razão humana possível de acessar o todo da questão, em um processo de, no dizer de Spinoza, beatificação da inteligência. A segunda, kantiana, que entende ser a razão humana radicalmente limitada, impossibilitando o acesso ao todo da questão, tornando novamente legítimo a aceitação do mistério entre nossas tentativas de buscar a verdade ou, nesta argumentação presente, a cura. Há coisas que nos são interditadas, apesar de, nem por isso, serem impraticáveis. Outro tema de uma complexidade cujo aprofundamento estava para além do tempo de exposição e do ânimo da plateia. 

  • Por fim, falar da presença inequívoca e ubíqua do tema da espiritualidade no momento em que todo o sentido dado pelas intervenções médicas se esfacela, no surgimento, feito ferida aberta, da vulnerabilidade extrema do ser humano, ou da terminalidade da vida. É o lugar comum do tema. Quando ele aparece mais óbvio por um motivo simples: a morte aponta para a vida exigindo dela o que foi feito para merecer a morte. Merecer aqui em, pelo menos, dois sentidos. O primeiro, relacionado à justiça, por que justamente eu tenho que morrer? O que fiz de errado para merecer a morte? O segundo, relacionado à grandeza, o que fiz de bom para merecer a morte? Em outros termos, de um lado a morte como castigo, de outro, como prêmio. Nenhuma alma humana consegue encarar o fim da vida fora destes extremos. Ou é o desespero ou a esperança. É a convulsão ou a aceitação. O inferno ou o céu, ainda que esses lugares não existam como um topos, que sejam ao menos um topoi, isto é, um ponto de partida argumentativo para se imaginar o desfecho da vida humana, quando a história de cada um chega no topo. Ainda que esses lugares u-tópicos representem o que se passa na consciência de cada um no derradeiro instante. 

Para cada item desse me sinto motivado a fazer um vídeo. Acredito ser um esboço interessante para a introdução do tema Saúde e Espiritualidade. Segue o que imagino ser o programa ideal dos vídeos, correspondendo a cada um dos tópicos anteriores:



 

sexta-feira, 4 de maio de 2018

As três forças da anamnese

Sabiam que o simples exercício da anamnese também envolve as três forças que venho tentando mostrar certa coerência entre elas, quais sejam, a força sexual, a do trabalho e a da morte?

A anamnese é aquela atividade básica da medicina de coletar a história da doença da pessoa que nos procura com o intuito de encontrar uma solução para aquela dor.

Como a força sexual aparece aqui? Temos o costume de fecundar a história das pessoas com a nossa lógica. Uma lógica aprendida em seis anos intensos de estudos. Não devemos esquecer, porém, de deixar nossa razão ser fecundada pela lógica delas.

Fecundação aqui parece um termo metafórico de extrapolação duvidosa, porém ele revela todo o cuidado, responsabilidade e paixão (pathos) necessários em uma relação de partilha que deverá gerar filhos (diagnóstico e terapêutica), que são tanto maior motivo de júbilo quanto mais bem concebido tiverem sido.  

A força do trabalho se mostra no esforço de resgatar e elaborar uma narrativa da doença que ajude a construir um objeto que guie o retorno à saúde. Após concebida a narrativa, ainda se deve dedicar à lapidação, ao estudo meticuloso dela, ao conserto de conexões quebradas ou incoerentes. Se na etapa da força sexual estávamos no âmbito do primeiro encontro, cheios do viço da novidade, na da força do trabalho, caímos no lugar da escultura, da técnica, da ars.  

Por fim, há uma ética que percorre todo o exercício da anamnese, que é uma que apenas aprendemos de fato ao lidar com diálogos em torno da morte: aprender a ouvir mais do que falar como símbolo do estágio final da aceitação do que a vida traz, incluindo seu fim. Essa ética nos devolve a uma humildade de saber que todo esse esforço pode não resultar em cura, mas pelo menos em uma conversa terapêutica diante de alguém que esteve aberto para tentar algo por aquele que sofre. A filosofia dos cuidados paliativos dizem ainda: alguém que está aberto para continuar tentando, de um outro modo. 

É assim que o bom entrevistador passa por estas três zonas sagradas: participar da concepção da história, trabalhar sobre ela, respeitar a cada momento a sua fragilidade. É assim que seis anos de faculdade servem para formar médicos medíocres, e a vida inteira, sábios.

Amadurecendo

O primeiro blog que criei sobre minhas aventuras médicas chamava-se Desmedicina. O sentimento era bem este: desfazer aquela medicina que tentava se construir em mim. Eram as desditas na faculdade enriquecidas por um conjunto de reflexões que endossavam a revolta. 

Desativei-o quando me formei. Entendi que era preciso assumir a máscara da Eumedicina: viver a medicina do cotidiano com o que havia de bom e de ruim. Misturei-me com a atenção primária. Engoli o livro de medicina ambulatorial com um gosto que nunca tive. Eram os pacientes que batiam à porta para os quais teria de dar alguma resposta. 

A residência em medicina de família aprofundou essa medicina do cotidiano em mim. Depois vieram os plantões no grande hospital, o lugar de onde sempre quis fugir, mas que o destino me devolveu ao convívio. As rotinas hospitalares, assimilei-as, e até aprendi com os colegas outros tantos truques que não estão nos livros. O cotidiano, dessa vez, me esmagou. Os sofrimentos que anotava em prontuário, com a morosidade do hospital público e a superposição de doenças ao paciente que não havia entrado tão grave, me desleixaram. Entrei em certo patamar de suficiência. Acreditei ter chegado em um ponto ótimo, pelo menos para as necessidades dos lugares em que estava. 

Surgiu a oportunidade do mestrado em saúde coletiva. Reacenderam, então, os estudos em filosofia, teologia, sociologia e estética. Eram rascunhos, mas era mais do que se costuma ler entre os esculápios modernos. Junto com eles, a crítica política sobre a medicina que praticava. Todavia, agora ela vinha com uma carga de experiência que tornava meu discurso menos ingênuo, um pouco mais compassivo, mas ainda muito ácido. 

O título de mestre me permitiu reingressar em uma faculdade de medicina, agora como professor. Por outro lado, ainda mantinha a prática nas emergências. Um lado ajudava a enriquecer o outro. Como professor de saúde comunitária, meus exemplos sempre foram cheios das vivências do cotidiano. Como médico de emergência e regulação de destinos de pacientes sobressaía-me com falas de filosofia, sociologia, teologia e estética - os rascunhos. Em um contexto ou em outro, tudo isso era uma excentricidade: um professor de saúde comunitária cheio de experiência hospitalar, um clínico de quase-hospital repleto de falas das ciências humanas. Vale ressaltar que no primeiro caso a excentricidade era mais aceita que no segundo, onde me tinham como um maluco beleza. 

Algo que vinha como sombra de todo esse movimento era a fuga de enfrentar os lugares mais desconfortáveis para meu espírito. A objetividade, o protocolo, a disciplina, a memorização de itens não explicados, os imperativos, tudo isso se remetia a uma noção de hierarquia que me era repulsiva.

Até que meus estudos se depararam com a crítica da mentalidade revolucionária: o mundo como jamais funcionou. Devolveram-me o respeito pelas tradições, para as quais já tinha o coração aberto: uma porta para papai, outra para vovó. 

Mesmo as medicinas alternativas que comecei a estudar como elemento adicional de minha personalidade arredia me apontaram que nada se consegue sem objetividade, protocolo, disciplina, memorização de itens não explicados, imperativos. 

Esse movimento último da alma está me conduzindo a retomar os estudos do cotidiano médico oficial ocidental, afastar-me um pouco das ciências humanas. Os discursos sociológicos são intensos, mas as dores das pessoas não se combatem apenas com falas, mas também com elas. Não podemos desprezar o trabalho de todas as medicinas em querer cuidar dos sofredores. 

Depois de muito estudo - que ainda é nada - percebi um ponto em comum nas mais diversas experiências médicas, que de outro modo possuem visões de mundo praticamente inconciliáveis: todas são fundadas em tradições sagradas que acumulam esforços para entregar a melhor resposta para os pacientes que batem à porta. 

Vamos lá! Próximo capítulo: "distúrbios do equilíbrio ácido-básico". (No leitor de pdf ao celular: "Tibetan medicine, a short introduction").