sexta-feira, 9 de março de 2018

Sala de situação de neoplasias: pessoas que recebi na sala

Sei o quanto é importante ter números sobre as doenças que começamos a estudar na medicina. Dão uma ideia da situação daquele agravo na população. Permite-nos ter uma visão do impacto populacional, na economia, o peso para o setor saúde, etc. Todavia, queria falar de pessoas. 

Sabe quando você olha para uma luz forte e ela fere sua retina, de tal forma que quando fecha a pálpebra lhe vem aquela mancha luminosa? Alguns pacientes que tive sob meus cuidados e pessoas em minha proximidade foram assim. 

Havia um senhor de cinquenta anos com neoplasia de estômago. O tumor havia crescido, dificultando a passagem de alimentos sólidos. Chegou à enfermaria já em uso de sonda nasogástrica. Eu era interno no hospital geral que o recebeu. Era a primeira vez que acompanhava alguém jovem e independente usando sonda de rotina, mesmo fora da internação. Quando fui colher sua história, passou-me um papel com uma letra de forma perfeita. Havia organizado sintoma por sintoma em torno de uma cronologia precisa de seus aparecimentos. Com uma voz rouca e um jeito que buscava esconder o incômodo da sonda, como que parecendo um príncipe ferido, pediu para que eu ficasse com o papel, a fim de ajudar a ciência. Ele sabia que a ciência não o ajudaria a tempo. Seria para as futuras gerações. Guardei aquele papel com zelo em uma caixinha na cabeceira da cama até eu mudar de casa e algumas coisas se perderem na mudança. 

Menino que era à faculdade, quase não tive a experiência de ter seios femininos nas mãos. A vivência da palpação da mama me era quase sagrada. Sabia que a exposição que a paciente me oferecia era uma concessão frágil, doída, tímida a mais não poder. O professor vigiando minha mão promovendo aquela palpação me fazia suar ainda mais. Um nódulo, então, me parou: duro, irregular, aderido a planos profundos. O mamilo não expressava nada. Explicamos que teríamos de investigar. Era provável ser um câncer. A pessoa chorou assustada. Senti que o professor se compadecia, mas não tinha palavras, ditava o que eu devia pôr no prontuário. Queria ter alguma palavra para dizer, mas precisava dar vazão ao ditado. Finda a consulta, lágrimas secas, a mulher sai levando os papéis necessários para a investigação.

Os cânceres de pele, de vez em quando apareciam com uma devastação local, principalmente em face, mas raramente metástase. A não ser o melanoma, cujo protocolo de mutilação da pele o residente fazia questão de explicar quantos centímetros eram necessários retirar a fim de ter margem livre de doença, e investigar linfonodos para estimar seguramente o prognóstico. O melanoma merecia explicação. 

Nos elevadores do prédio em que mamãe mora há mais de vinte anos, acabávamos conhecendo a silhueta da vizinhança. Na década que morei lá, vi casais se formarem e se desfazerem, mulheres surgirem grávidas pela porta, filhos novos vindo da maternidade, idosos deixando de entrar. Um dos casais que vi se desfazer, tomei conhecimento fora do elevador. Ela chorava desesperadamente a morte do marido. No flanerógrafo, um papel convidava para o velório e à missa. Um câncer de próstata agressivo consumira o homem em um ano, pelo o que meus olhos puderam calcular. Tinha um pouco mais de cinquenta. Seus filhos ainda eram adolescentes.  

O câncer colorretal me chegou mais nos ambulatórios da atenção primária. Não em sua crueza e evidência, mas na necessidade de eu propor, praticamente impondo, colonoscopias para sexagenários com anemia e constipação, ou sangue visível nas fezes. Meu pecado dos primeiros anos de formado: nunca consegui dizer para eles, olho no olho. A maioria chegava calado e acompanhado ao consultório, deixava o parente cuidador falar. Nessa circunstância, pedia um tempo com a família e revelava a suspeita, tanto mais quanto mais estigmas de doença ativa o idoso apresentasse, como por exemplo a consumpção.

- Se estivéssemos em país desenvolvido, dizia eu, haveria um programa de rastreamento que proporia uma colonoscopia a cada dez anos, a partir dos cinquenta. Não teria chegado a ter sintoma, e o que fosse identificado teria sido retirado com alta probabilidade de cura. É melhor pedirmos. É um exame chato, mas necessário. - a parente entendia e agilizava.     


***

Eu tinha cerca de dezoito anos quando vovó chegou na nossa casa para ficar. Ela ignorava que não iria mais voltar para a casa dela, para a cidade dela. O câncer já tinha invadido os dois pulmões. Era irressecável, disse o cirurgião torácico para o papai e para ele somente. Por um medo que o câncer se espalhasse ainda mais rápido com a revelação, decidiram não falar nada à vovó. 

Uma tosse persistente e seca martelava a casa. Pálida, andava cansada da cama para a rede, para a outra cama, para a primeira cama, e de novo, até não ter mais forças para andar ou sequer falar. Não lembro quantos meses foram, mas foi rápido. 

Meu irmão mais velho, que praticamente foi criado por ela, certa noite chegou bêbado em casa. Era a tristeza de vê-la daquele jeito e a falta de horizonte. Ela quis sair da rede e não pôde. Ele tentou carregá-la nos braços e faliu. Foi chorar no meu quarto. Não sabia o que dizer. Toquei em seu ombro como tentando partilhar da falência. 

Papai havia contratado uma técnica de enfermagem. Fez os cuidados paliativos todos em casa. Soro, morfina oral, injetável. À época não se falava em adesivos. 

Um dia cheguei do colégio, e vovó roncava. Não era um ronco normal. Eram os estertores do final da vida. A hipóxia extrema ou talvez uma metástase no cérebro a fez perder a consciência e o controle da língua. A flacidez dos músculos da entrada das vias aéreas misturada com a saliva provocavam aquele som. Mesmo inconsciente, esperou meu irmão - seu neto-filho - chegar para partir. Papai anunicou a proximidade do desenlace. Mamãe, conforme o costume do interior do Nordeste, foi pegar uma vela e a segurou na mão dela. Que os caminhos fossem iluminados! 

Choramos, choramos, choramos...

As férias, a liberdade, a casa grande, a cidade pequena, a bicicleta, os cachorrinhos, os primos, as tias, a tapioca, a bruaca, o baião, a carne-de-sol, a paçoca artesanal, o riso farto, o jeito doce, os olhos verdes, o cabelo cinza, os vestidos floridos, a cadeira de balanço, os bordados, a máquina de costura enferrujada, a bíblia aberta, o terço rodando na mão...

Nunca fumou na vida. Quando muito, inalava uma vez ao dia a fumaça de seu fogão à lenha. Carregando ela comigo, numa visita de pneumologia, perguntei ao professor sobre a influência de fogão à lenha como fator de risco para câncer de pulmão. 

- Não. Para doença pulmonar obstrutiva crônica li um estudo, mas para câncer, não. 

Vovó não estava nos números.

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