As mitologias geralmente guardam uma verdade essencial que, mesmo despida de toda a retórica dos contadores de história, resta fatos fenomenais que reproduzimos no nosso cotidiano laico.
Vou lhes contar um mito meu da medicina.
Era uma vez um senhor médico que tinha a missão de cuidar das pessoas em três andares de um prédio abarrotado de doentes. Para que tivesse energia de concluir sua missão, ele se preparava o dia inteiro a fim de estar disposto pela madrugada a dentro. Seus olhos, quando se fechavam, mantinham o cérebro em uma suspensão leve. O mínimo barulho da porta tornava seu corpo ativo novamente. Sua mente farejava vidas à salvar pelos corredores. O encanto de uma medicina que tinha o poder de resolver as coisas rápido à beira de um leito faiscava no peito.
Reza a lenda que um dia, em seu horário de repouso, pegaram-no estudando um grosso livro, escondido detrás da bancada de prescrição. Estava longe do quarto de dormir, porque colegas conversavam por lá. Não os queria atrapalhar. Quando mais moço, ainda estudante de medicina, um professor havia discutido sobre a gravidade de um paciente e arrematado que naquele alguém deveria ficar colado. Ele assumiu a ordem na literalidade. Não foi para casa por três dias. Dormira no hospital por esse tempo, checando sinais vitais e alertando para mudanças de conduta no tempo de ouro.
Decidi acompanhar esse mito quando eu era interno. E uma das cenas que mais me comoveu, referendando o que ouvira falar, foi quando ele decidiu ficar ao lado de uma paciente noite a dentro, olhando o gotejamento de seu analgésico, pois percebera que a sua presença médica ali potencializava o efeito do medicamento, a deixando em paz.
***
Ontem, tive uma destas pacientes em minha frente. Já passava do horário estipulado da divisão da madrugada. Todavia, pus-me em guarda em frente de seu monitor. Queria ter certeza que os sinais haviam se estabilizado antes de tirar uma hora e meia de sono.
Toda vida que repito esse feito, não me vem outro mito na cabeça. Lembro dele no mesmo instante. E mesmo antes. A lembrança me diz o que deve ser feito. Claro, que como todo bom seguidor de mestres, tenho meus muitos momentos de traição à esse rito. Quando o sigo - repetição solene - uma redenção parece aquecer o peito. O corpo, no outro dia, despenca à cama esgotado, como se tivesse sido meu calvário. Uma mensagem do celular toca. O colega diz que ela está bem. Então, permito o sono da noite, de dia.
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