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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Carta ao meu amigo hoje interno de medicina

Querido,

Você me desabafa que passa mais tempo com as folhas que com as pessoas. Não foi para isso que passou quatro anos de faculdade, eu sei. De manhã é saber como os internados estão, o resto do dia é preencher prontuários e participar de discussões, ao final é ir informar a conduta médica para os interessados. 

Quando você chegar na saúde comunitária, vai ver que boa parte do nosso tempo é dispensando receitas para os que batem à porta. Quase nunca entrar na comunidade, ainda mais nestes tempos de violência que assombram a cidade. Acabamos passando mais tempo com as folhas que com as pessoas, também. 

Penso, todavia, que devamos enfrentar essa situação de peito aberto. Tenho para mim que a formação médica, custosa que pareça, é porque não tem um objetivo racional ao final, não desta racionalidade moderna que o homem de gênio se gaba. Ela é, sempre foi e nunca deixou de ser, mesmo a contragosto, da ordem da magia.

Em certa comunidade oriental, salvo engano Zen, um dos descendentes veio parar por estas bandas eurocêntricas e teve uma visão da deusa do lugar de origem. Ela era filha do fogo. Esse arrebatamento o fez crer que poderia representar a deusa entre os homens. Voltou para sua comunidade primordial e apresentou suas pretensões. Os sacerdotes do lugar deixaram-no passar noites inteiras nos cantos mais gelados, derramando sobre ele baldes de água. Se ele era realmente protegido da filha do fogo, que provasse! E sobreviveu. Voltou com a fala mansa e ígnea para motivar os transeuntes aflitos dos caminhos por onde passava.

Entende onde quero chegar? Tenho para mim que essa nossa pretensão de querer uma medicina "humanizada", como dizem por aí, deve sofrer a prova da desumanização extrema, da mecanização, da negação do corpo e dos sentimentos. É o que tentam fazer por todos os lados as instituições por onde passamos. Sobreviveremos ou morreremos de frio? 

Com um pouco mais de tempo na estrada que você, se eu sobreviver, sentindo o deus do Encontro enfim tomar o corpo, vou te contar como é essa mística de cuidar das pessoas pelo gesto, pelo olhar, pelo toque terapêutico dos xamãs. Por ora, prescrevo e instilo veneno nas veias, escravizam-me papéis. Algum dia, queira Deus, liberto desse jugo, espalhe mais calma, mais conforto, com menos instrumentos entre mim e o outro. O ápice do encontro!  

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