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sábado, 24 de fevereiro de 2018

Assuntos segredados

Enviamos os alunos para o que seria sua primeira atividade de coleta de anamnese com pessoas reais, não em consultas simuladas. A anamnese tinha um propósito bem específico que era identificar os riscos a que estavam expostos os vários trabalhadores do campus. Dessa forma, afastava-se um pouco da anamnese habitual, de quando começamos a aprender esta arte, que visa a decifrar um enigma resgatando os passos da doença na fala da pessoa. Esta aqui já sabe o espectro de doenças e os riscos inerentes a cadeia de produção das mais diversas profissões.

Quando retornamos à sala para expor as histórias e comentá-las, alguns falaram sobre a dificuldade da abordagem de certos trabalhadores. Alguns não queriam parar o trabalho ou, pelo menos, não ser visto com o trabalho parado. Outros pareciam esconder os pormenores dos riscos já que estavam do lado do seu empregador. E os empregadores entrevistados pareciam sempre amenizar os próprios riscos, uma vez que é da natureza do empreendedorismo assumir os riscos na carne e seguir adiante, com a faca no dente.

Aqui encontrei outro tema que conecta as três zonas da medicina que abordamos neste semestre: a vontade de esconder.

Na saúde do trabalhador, esse segredo é historicamente guardado pelo medo da perda do emprego, no caso do empregado, ou pelo recalque do que se joga empreendedor no mercado. São as falas que buscam escamotear os riscos. 


Ao contrário da imagem do sindicalista que sempre está com um megafone na boca e a exaltação nos gestos em indignação contra o que chama, pela categoria filosófica que assumiu, opressores burgueses, a maior parte dos trabalhadores fazem parte da massa que tem um senso de dever no peito a ser cumprido a qualquer custo. Aliás, é a imagem desse trabalhador, e não a do preguiçoso, que foi idolatrada na doutrina de Marx. E, se por força das pressões sociais, houve as revoltas proletárias, quando a maré social está mansa, e a economia cresce, o que se vê é, de fato, as virtudes de esforço e dever no coração dos construtores da sociedade. Quem nutre estas virtudes não quer se entregar às reclamações, particularmente alimentados pelo discurso sapiencial da bíblia que colore a ritualística domingueira. São cinco dias de trabalho, dois para gastar conosco e com os nossos, e uma hora para sagrar à Deus. Essa é a semana ritualística da maior parte dos trabalhadores. Não gastar tempo reclamando é um provérbio.

Quando o assunto toca as neoplasias, encontramos as pessoas que querem não bem esconder os riscos, mas sim a doença em si. Como que, por um encanto, não falar a fizesse inexistente. Novamente recorro ao simbólico-religioso em nós: se o mundo foi feito em um Fiat Lux, se o Verbo inicial se fez carne e fundou nossa civilização ocidental em vários aspectos, se ainda em toda missa o hoc est corpus do padre transforma pão em carne sagrada, bem que o calar poderia fazer as vezes de não provocar nada na matéria. Assim, o segredo na fala muitas vezes alimenta uma doença que, do contrário, teria sido diagnosticada a tempo para ser extirpada.

Por fim, nossa última etapa é entrar nos assuntos do sexo. Heráclito, o grego da realidade cambiante, dizia que não se pode olhar de frente nem o sol, nem a morte. André Comte-Sponville, o filósofo místico-materialista, acrescenta: nem o sexo. 


Percebemos, quando vamos aprendendo a coletar histórias de sofrimento, que o sexo é campo minado. Ninguém fala das experiências sexuais com termos inocentes. Ou se tem metáfora para despistá-lo, ou lascívia para saboreá-lo, ou ainda ciência para esconder sua selvageria. Os lugares do sexo em nosso corpo são cobertos, nos chamados povos civilizados, duas vezes. Há uma riqueza de terminações nervosas em lugares especiais que, quando tocados, não é dor, nem calor, nem frio, nem pressão que se sente, mas prazer. Desde tempos imemoriais praticamo-lo na intimidade. Até mesmo os lugares do sexo parecem ter duplo véu. O médico que fala abertamente de sexo com  seus paciente é porque já está senhor da situação, especialista que é. Todos os outros vão por arrodeios. E ainda os especialistas não atravessaram o véu por inteiro. A naturalidade, que não raro vem com a jocosidade, permite falar sobre sexo, mas não do sexo. Elevamos o assunto a uma superfície em que o ato é comentado quase como sem autoria, a fim de que qualquer pecado que o assunto deixe transparecer tenha vida própria sem qualquer sujeito para ser punido ou julgado. Quão difícil é, desse jeito, promover a almejada quebra da corrente de transmissão quando nos deparamos com um paciente-índice de uma infecção venérea.

São assim, trabalho, câncer e sexo, três zonas que, por motivos próprios, preferem não falar de si, e o quanto isso aprofunda ainda mais o processo de adoecimento é o que constatamos. 

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