Amigo,
Você queria falar comigo sobre atenção primária. É que presenciou meu discurso de como me converti a esse mundo na faculdade, mas também testemunhou as reclamações contra o cotidiano que nos esmaga diuturnamente nos ambulatórios de lá.
A conversa vai ser longa. Estarei lhe enviando cartas. Vou aproveitar este momento de reencontro com a medicina de família, agora que assumi papel de supervisor de médicos que estão no interior do Ceará. É um jeito diferente de olhar o que já fiz, vou olhar do alto.
A primeira viagem que fiz, tinha que me encontrar com cada médico, mas queria conhecer o lugar. Se a família e o emprego principal me desobrigassem, passaria uma semana rondando, ouvindo as pessoas, fotografando as belezas, o normal e a feiúra dos cantos. Sentaria à pracinha no final da tarde para passear e aqui e ali escutar as conversas jogadas fora. Conheceria as iguarias da região, o pulso do comércio, o esforço da agricultura e da criação de gado, visitaria os cartões postais, embrenhar-me-ia na vegetação tentando sentir os espíritos elementais, subiria ao alto do serrote para ver o quanto tudo o que vi e ouvi era pequeno e parte de algo maior. Só então eu desceria para os doentes.
Talvez daria para a equipe me reservar um canto no carro das visitas para os debilitados que não podem ir à unidade de saúde. Em cada casa, não sendo o médico, bisbilhotaria a arquitetura, a decoração, a simbologia da vida espiritual e as fotos das recordações. Nos tempos vagos da anamnese dos médicos, aproveitaria para perguntar algo da pessoa mesma, que não fosse dor, nem desespero.
Sentir no corpo o que é estar dia e noite no lugar, a distância ao trabalho, o ritmo da vida, o silêncio da noite, como o vento se move quando todas as portas estão fechadas.
Se a família e o emprego principal me desobrigassem por completo, tomaria um ano para entender como as festas modificam a cidade, como se prepara, como se despede delas. Como o ano nasce, como ele vem à pino em junho, como ele morre ao comemorar o nascimento de Cristo. Conhecer os sacerdotes do lugar, suas ladainhas, o movimento dos fiéis em busca de construir uma vida comunitária em aliança com alguma narrativa cósmica. O desafio diário de cuidar da transcendência tendo a imanência do ronco da barriga para acalmar.
Só depois buscaria as estatísticas de doenças, os remédios e os instrumentos disponíveis para combatê-las, a evolução histórica desta luta nos último cinco anos, as condições de atendimento à população nas diversas unidades de saúde. Testemunhar algumas consultas para ver como as pessoas confessam suas dores.
Como essa liberdade não é possível, apenas um centésimo do terceiro parágrafo e um terço do penúltimo é que pude realizar. Tenho mais algum tempo por lá, quem sabe?
P.S.: Um habitante ufanista da região é pai de uma amiga. Emprestou-me um calhamaço de arquivos sobre o lugar. Vou degustando o povo pelas letras de alguns letrados por enquanto.
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