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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Medicina e Espiritualidade para IFMSA

Por estes dias anda acontecendo o encontro da IFMSA (International Federation of Medical Students Associations) em Fortaleza. Convidaram-me para ajudar em um espaço, o de medicina e espiritualidade. 

Ao chegar, o jovem que me ajudaria a conduzir perguntou o que achei da energia das pessoas. Sinceramente, disse que sentia-os cansados. Ele me revela que neste encontro há momentos de deliberação organizacional que corta a noite, acrescido de um momento de confraternização festiva. 

Tive a ideia, então, de começar perguntando a todos os trinta que apareceram para participar deste espaço quanto tempo eles haviam dormido. Alguns viraram a noite. A maioria dormiu entre 3 e 4h. Havia os de 1 e 2h. Os mais descansados estavam com o sono regulado entre 8h e 10h. Não poderia começar nada sem minimamente equilibrá-los. A yoga vem me fazendo um grande bem. Partilhei alguns movimentos com eles. 

Começamos depois, então, o diálogo por aí. 

- Sabiam que yoga em sânscrito significa selar o cavalo? Os hindus reconheciam que o espírito era o grande agente do corpo e que deviam fazer do corpo um cavalo domável. Algumas escrituras dizem que os deuses temiam que a prática de yoga provocasse um domínio tal que fizesse que o espírito iogue se desprendesse da carne. Seria uma derrelição da ordem divina. 

Queria conhecer mais esse público:

- Vocês acreditam em Deus?

Noventa e nove por cento acreditavam. Fiquei surpreso. Leio tanto livros de ateus que mostram uma realidade tão diferente na Europa, que esperava, entre estudantes de medicina, encontrar mais descrentes. Suspeitei que este Deus não tivesse a mesma imagem para cada um. Alguns definiram como o Deus judaico: o indefinível. Outros como o Cristão: o Amor-Deus. Outros como o Deus dos Iluministas: o Onisciente-Deus. Um garoto nos disse que deixara de acreditar em Deus ao entrar na adolescência. Mas, não era bem uma descrença absoluta. Parecia mais uma moratória. Deus, se existisse, não era acessível à nossa razão. Dever-se-ia esperar morrer para crer. Eu diria que não. Há um equívoco entre crer e saber. Ver Deus face à face: saber. Ter a ideia de Deus organizando a nossa identidade: crer. É o que os hebreus chamavam de sombra de Deus. Deus: uma nuvem. 

Perguntei sobre imortalidade da alma. Noventa por cento acreditava, e quem não, pelo menos acreditava ainda em uma realidade transcendente, onde a mente poderia ainda se aproveitar de certo status de independência do cérebro.

Os jovens começaram a falar sobre suas crenças, suas concepções de amor, de Deus, de salvação

Uma das coisas que quis trazer, em virtude de nosso Ocidente ser filho do cristianismo, é que o discurso judaico-cristão, ao contrário dos muitos discursos que floresceram à época do surgimento da civilização hebraica, era um discurso de derrotados. E isso não é pejorativo. Pelo contrário, demonstra a força que o discurso de um povo teve para manter acesa a coesão deles. Quando os outros povos eram dominados, sua mitologia e seu panteão morriam junto com eles. O discurso só existia enquanto estavam vitoriosos. Não tinha força para se manter vivo após o declínio da civilização deles. Mas, com os hebreus não foi assim. 

A perspectiva que eu quis fazer com que eles enxergassem era a de quem via as coisas do plano da Terra, de olhos relativos e mortais. Claro que houve aqui e acolá alguém levantando o discurso do próprio Deus: "Os outros feneceram porque não adoravam o Deus verdadeiro". O meu ponto não era esse. Segundo o Professor Dr. Jacob Wright, da Universidade de Emory, nos EUA, a grande questão, que faz valer a pena estudar profundamente os hebreus em um mundo laico, é entender que mecanismos são estes de sobrevivência que fizeram com que um povo se mantivesse coeso mesmo na desgraça, para além de Estados-Nações territorialmente limitados. Em um mundo globalizado como o nosso, em que os limites territoriais dizem cada vez menos sobre um povo, a resposta para esse questionamento seria uma pérola.

Na medicina, algo muito mais tocante importa para o indivíduo: diante de doenças que nos consomem, por vezes esfacelando nossa identidade diante do espelho (filme: Invasões Bárbaras), que mecanismos teríamos para manter nossa coesão? O discurso da religião aparece entre as respostas. 

Trouxe para eles uma divisão didática sobre as ordens a que estão submetidas nossas mais diversas ações e decisões: 1. a verdade (de responsabilidade da ciência); 2. o poder (da política); 3. o dever (da moral e da ética); 4. o amor ou o espírito (da espiritualidade ou da religião lato senso); 5. o absoluto ou Deus (da religião estrito senso ou da filosofia quanto se permite a metafísica). Divisão engendrada pelo filósofo André Comte-Sponville, no livro "O capitalismo é moral?". 

Um deles havia dito que Deus seria Ciência. Por esse esqueminha aí de cima, não. Deus estaria no topo, coroando a pirâmide. Mas, ciência, replica ele, envolve tudo isso. Não, minha tréplica, ciência não decide sobre o bem e o mal de uma conduta, apenas se ela é verdadeira ou falsa. Se há um senhor de 77 anos, preso a aparelhos no hospital, sobrevivendo pela bomba de noradrenalina, e seu médico decide desligar a bomba, esse julgamento não é científico. A ciência poderá apenas dizer se vai ser verdade ou não a morte conseqüente ao ato. Que valor moral isso terá? A moral, de outro modo, não implica amor. O comedimento da filha que está lá fora da UTI, pedindo para que não seja desligada a bomba de seu pai, não envolve apenas um imperativo ético, mas uma lágrima de amor. O que não a faz, de todo modo, ter ideia do absoluto. Mas, se, além disso, ela proferir o discurso que o sofrimento de seu pai pode vir a ser recompensando por Deus no momento oportuno, temos aí o campo mais óbvio da religião, embora não seja o único. 

Em certo momento, perguntei para os que não acreditavam em imortalidade se, mesmo não acreditando, eles tinham alguma forma de buscar perpetuidade. Um deles falou sobre o renome e a fama. Outro quis desmerecer essa busca. Pedi que não tentássemos diminuir a fala do outro, mas apenas proferir nosso caminho. 

Desde há muito, a humanidade se divide na busca de permanência, quiçá infinitude. Os heróis de guerra queriam a glória que firmaria seus nomes na história (Aquiles). Os santos, a ascese. Os pais, os filhos (perpetuação genética). Os budistas, a luz. Os cristãos, Jesus. Cada cultura, cada religião, cada filosofia já formulou discursos para enfrentar a difícil condição de sermos mortais. A vida nunca respeitou esse esforço: sangramos, a pele rompe, perde a elasticidade, mancha-se, os ossos enfraquecem, os músculos secam, esquecemos a todo o instante de tanta coisa. Vamos deixando o que somos pelo caminho que passamos. 

Uma mensagem muito importante eu tinha que deixar para aqueles meninos e meninas: somos movidos pelos ideais, pelas paixões. A verdade pode ser uma ordem primordial. Desde que temos consciência, estamos em busca de saber se a realidade que nos cerca é verdadeira ou mentirosa. Todavia, na medida que vamos criando corpo vamos fundando uma doutrina sobre a vida, uma cosmovisão que dá sentido ao que somos, ao que queremos ser, aos nossos sonhos. A busca de nossa verdade, então, vai se tornando uma busca de completar esse quebra-cabeças que somos nós, do que queremos ser. Um quebra-cabeças que já tem um cerne, mas onde peças podem ser adicionadas dando novo contorno, mas quase sem perder a forma (a forma segundo Aristóteles). A ciência é assim. Revelei-lhes que estudiosos da filosofia da ciência vem mostrando, a exemplo de Edgar Morin, que nenhuma pesquisa científica se dá sem influência ou conflito de interesse. Todo pesquisador é um apaixonado. A história de vida de cada um direciona o leme. É o que Morin chama de themata. A minha dica para eles é que não se envergonhassem de seus thematas. Eles dão sentido à busca. No final das contas, voltando para aquele esquema do Sponville, é Deus, ou o amor, ou o espírito que move a verdade. Sem eles, a verdade é nua e oca. 

Uma estudante ficou tão encantada com essa revelação que veio falar comigo depois. Não apenas ela, mas três. Os professores, quando entramos na faculdade, vivem pedindo para esquecermos o que fomos, para assumir, de forma isenta, a verdade da ciência. Bem, isso é um engano, falei, talvez eles mesmos não tenham percebido o quanto isso é impossível. Que eu é esse que abandona o si mesmo para ir em busca de algo para si? As pessoas tentam isso. Sim. E é por isso que temos vários indivíduos cindidos. São uma coisa no meio acadêmico, outra em casa ou na rua. Corpos possuídos pelo espírito científico. Quando entram na faculdade, deixam o próprio Espírito no cabide da entrada. 

Dos pontos que levei, esse parece ter sido o mais comovente. De uma forma geral, trazer temas de espiritualidade para esse povo foi como ter devolvido alma ao fazer deles. Eu posso ser eu na minha busca de ser mais? Era o que a moça me perguntava, como se eu a estivesse abençoando na jornada dela. Meu Deus, como não?! 

Dos milagres mais lindos que presencio na vida é poder compartilhar assuntos que me são caros e são acolhidos com amor no coração das pessoas. Como algo que palpita em mim pode fazer palpitar o que há no peito de outro? Milagre que flui. 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Quem gosta de parto vaginal?

Nas nossas práticas de ambulatório de pré-natal, em que atendemos pessoas em situação de risco social do arredor da Unidade Básica, faço questão de sempre perguntar: "Qual a sua preferência de parto?". Em unanimidade elas respondem "o normal", que é o vaginal.

É uma pergunta idiota. As pacientes atendidas em Unidades Básicas do Nordeste não tem direito de escolha. Há uma possibilidade teórica de liberdade. Todavia, há um obstáculo gigantesco entre a teoria e a prática. Atendidas por médicos de família ou partícipes do Programa Mais Médicos, lhes é dificultado o direito de escolha do médico que vai lhes acompanhar até o termo, ou o obstetra ou a maternidade. Por praticidade, a divisão segue o critério de território. É aquele médico, aquele obstetra e aquela maternidade que cobre tal região.

A escolha da via de parto é indicação do obstetra que decide o que é o melhor, tecnicamente, para a ocasião. Não que isso - a escolha ficar ao encargo do especialista por critérios técnicos -  seja errado, mas é estranho que não seja igual para a rede particular. Quem tem um plano de saúde já diz sua preferência desde o início. E se o obstetra discordar, troca-se de médico.

Faço questão de perguntar para as gestantes que atendemos sua preferência, porque evidencia o choque do modo de vida daquelas pessoas com as nossas alunas. Entre estas, raras são as que se submeteriam ao parto vaginal, por causa da dor, das lacerações possíveis. Não há documentário que lhes convença do contrário.

Então, questionei:

- Esse movimento de renovação da vontade pelo parto vaginal tem crescido nas classes mais favorecidas. Que perfil de clientes vocês acham que exemplifica essa vontade?
- Os naturebas. - replicou a moça.

De fato, há uma certa predominância desse "comportamento natureba" entre as mães que defendem o parto vaginal. Como seria isso?

Ele nasce de uma consciência ecológica de respeito pela natureza. É afeito a acreditar que há uma razão que nos une, algo de divino e espiritual, mesmo que não seja Deus. O corpo, como partícipe desse conjunto, tem suas razões de ser em cada ato. Dessa forma, esvazia-se a culpa da natureza. Não passamos mais a vê-la como inimiga, mas como mãe benfazeja e providencial. Gaia. Não há porque lutar contra ela. Não há pecado imanente, mas uma inocência do que está por aqui e do que está por vir. Um gosto por pensamentos sistêmicos, isto é, aqueles que englobam numa só razão todos os efeitos e causas surge nessa população. Daí voltarem-se também para as medicinas alternativas que sempre possuem uma visão cósmica bem coerente e coesa embasando suas práticas, ainda que as pesquisas de medicina baseada em evidência não provem nada. Replicam: "a inexistência de provas não prova a inexistência". 

Na trilha desse pensamento ecológico vem uma crítica contra a medicina moderna, cuja ciência nasceu em busca de enfrentar a natureza má, que mata, que destrói. Enfatizam assim o malefício das nossas intervenções, exaltam a iatrogenia, isto é, o erro médico. É uma razão reativa. Detratam a tecnociência que embasa a medicina moderna a fim de fazer erigir novas formas de olhar o cuidado com o ser humano. 

Aqui a dor é entendida como um mal a ser sanado, daí o envolvimento cirúrgico-anestésico. Lá a dor é uma parte da vida, um prelúdio para as alegrias que advém do parto. Exaltam a liberação dos hormônios de prazer, como que o natural equilíbrio da balança após tanto sofrimento. 

O debate envolvendo essas duas correntes vem se enovelando. De um lado, o primado do especialista como burilador da natureza. Isso corresponde em arte ao classicismo. A natureza não é bonita per si, mas deve ser lapidada para tirar dela o diamante. Do outro, o primado da natureza sobre qualquer vivente. Nisso temos o romantismo alemão que via nos cartesianos uns tolos redutores. A natureza basta per si

Enquanto essa luta viceja na saúde suplementar, o que me inquieta é boa parte da população escolher o parto vaginal, não pelas benesses dele, mas pela necessidade social.  

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Trabalhe em emergência. Não, digo, não trabalhe, quer dizer...

Eu tenho um amigo que ainda peleja por sobreviver à faculdade de medicina. Sou professor e poderia direcionar esse conselho para todos os meus alunos, mas se pensasse neles ficaria algo distante, e quero uma fala de mão no ombro. Falo para meu amigo. 

Não trabalhe em emergências. 

Você chegará cansado demais em casa, seu corpo estará quebrado por dentro, seus ossos parecerão estilhaçados de tanto esforço. Nós dois que nos esmeramos no pensamento de humanização da relação de assistência caímos decepcionados com o sistema que come nosso tempo com o paciente. 

Não. Trabalhe em emergências. 

Lembrei que o conhecimento que aprendemos na faculdade é dinamizado como nunca antes à beira do leito do paciente, na margem da mesa da consulta. Os olhos são treinados para as diferentes cores da pele doente, para os andares quebrados, para os inchaços e as assimetrias, de tal modo que muitos diagnósticos você já os dá enquanto o paciente entra no consultório. 

Esqueça. Não trabalhe em emergências. 

Com o tempo você se confia demais nesse olhar aquilino e diminui a fala. Quando o bicho pega no plantão, você fica cego para o espírito, vê apenas corpos adoecidos, entra e sai das salas sem cumprimentar, apenas para dar seguimento a raciocínios diagnóstico-terapêuticos. 

Isto é, trabalhe em emergências. 

Em boa parte dessas entradas você vai ver que o remédio que acabou de prescrever logo atrás já fez efeito. As dores que chegaram gritando foram sanadas. O semblante calmo vem te agradecer já na sua entrada. Quando você exerce sua atividade com proficiência, a sua simples presença passa a ser alento e segurança para quem estava aflito, para a equipe até. 

Não, garoto, não trabalhe por lá. 

Esses poderes sobem a cabeça. Vem a vontade de fazer piada dos sofrimentos, por eles se tornarem comuns no seu dia. Por saber que essa morbidade não causará morte, que aquela passará em tal tempo, que aquela outra é psicogênica. Vai querer rir da desgraça, porque ela não está em seu próprio corpo, pois o que há no seu corpo é cansaço desejoso de descontração. 

Não, espera! Trabalhe, trabalhe sim. 

Queria que você visse a gratidão dos familiares quando consegue um leito em um hospital bom, ou quando, depois de todos os seus esforços, vigilâncias, dedicação, o paciente se restabelece. Receber alguns presentinhos simbólicos. 

Não espere. Saia logo de lá. 

Vai experimentar o amargo de ser o primeiro a dizer que "ele(a) não agüentou". E ouvir o choro contido, ou o grito desesperador. 

Espera. Não saia logo. 

Olhe direitinho para esse choro ou para aquele grito. Você vai passar por isso em todo lugar da medicina que for. Contemple um pouco. Acolha-o. Você vai passar por isso em todo lugar da vida. 

Mas, quando perceber que a emergência está te anestesiando da compaixão da morte, está, definitivamente, na hora de sair. Ela te engana sobre a infinitude da vida. Aprenda o que tem de aprender e siga adiante.

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Leia também:

Você deixa uma parte de si no plantão
Pior Plantão Médico

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Entrevista sobre Humanização Médica

Entrevista concedida por ocasião do Webinar sobre Humanidades Médicas para Mariana Dias, graduanda em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação de Juiz de Fora, Bolsista do Programa de Educação Tutorial - PET-FACOM


1) Você citou essa busca atual pela medicina alternativa. Você acredita que isso se deve a esse lado técnico altamente desenvolvido e que acaba por esquecer o lado humano? Você acredita que a medicina, de forma geral, tem respondido a essa demanda pelo lado humano?  

Quando eu terminei a faculdade de medicina, mergulhei em um grande hospital geral conhecendo o grosso do que a tecnologia tem para ofertar aos seres humanos. Percebi que esse grosso não é muita coisa em relação ao que o ser humano é por inteiro. Esse modelo que é vigente nos hospitais, e que nos forma em grande medida, não cabe mais no bolso dos países. Os governantes percebem cada vez mais, e isso já faz um tempo, que não se pode sustentar uma saúde que se pauta em tecnologias duras, densas, como essas de pedir ressonância para qualquer dor no ombro. Daí vem as medicinas alternativas e trazem práticas voltadas ao cotidiano, em ambulatório, com intervenções em estilo de vida e ambiente, trazendo também novas formas de enxergar o ser humano que, entre outras tantas caraterísticas, o vê como parte de uma grande ecologia. A maioria delas traz isso. Assim, elas nos revelam um lado que esquecemos: fazemos parte de uma grande teia, e tudo que acontece nessa teia nos afeta. Devemos cuidar de nós, cuidando do todo, e vice-versa. O modelo hospitalar não alcança esse tipo de prática. 

2) Quais iniciativas você acha necessárias para que o aluno, em um currículo tradicional, se aproxime mais da comunidade, da ideia de ver o paciente além somente da doença, mas também do seu contexto humano, histórico?  

O aluno tem que entrar na comunidade. Fazer dela o seu campo de prática privilegiado. Conhecer as dores que se gestam no meio das gentes. Quando entrei na faculdade, o que mais encantava os meus colegas era a dissecação dos corpos mortos. A prática dentro da comunidade era o mais entediante. Entramos jovens na faculdade. Não conhecemos nada da vida. Precisamos conhecer o que é a vida para saber o que ela é adoecida e como ela deveria ser melhor. Isso requer conhecer outros tipos de discursos que não o do biológico. Precisamos ouvir as falas dos lamentos, dos folclores, da fé que luta e resiste para viver apesar de tudo. As falas de resistência das pessoas, dos movimentos de saúde produzidos por elas. Um dia eu vi uma palestra de um senhor em um congresso falando sobre pautar a medicina sobre o paradigma da física quântica. Ao final, eu me levantei e sugeri que havia físicas tão belas quanto, e mais próximas de nós, como as dos ventos que levam e trazem os pescadores, dos ares que embalam as cantigas de roda, do som dos terreiros e das danças do povo. Eu queria dizer com isso que muitas vezes nos revestimos de conhecimentos tão abstratos que mais nos afastam dos pacientes do que nos aproximam dele. Vi uma estimativa catastrófica, recentemente, que dizia ser a compreensão da receita médica em torno de 30% na grande maioria dos pacientes. Isso significa que 70% do que temos na nossa cabeça não chega a ser praticado no dia-a-dia das pessoas. Como elas se curam, então? Ora, por sabedorias que brotam das conversas de comadre. E a maioria dos médicos tem aversão a essas autonomias, pois corrompem a ciência que eles aprenderam. Xingam-nas de superstição. Mas, elas estão lá, insistentes.


3) Em relação a sua vivência pessoal com a comunidade, como é conhecer os pacientes além da doença? Quais impactos isso gera para você enquanto pessoa e para o tratamento dos pacientes?

Vou lhe dizer uma doença: linfedema crônico de membros inferiores. Essa doença causa vulnerabilidade para se ter erisipelas de repetição. Quando estou no pronto-atendimento, a única coisa que me importa é saber se o antibiótico está atuando sobre o tecido infectado, diminuindo a vermelhidão e a dor. Na comunidade, conheci uma senhora com esse mal. Ela era mãe de três meninos, três pedras preciosas suas. Convidou-nos para entrar, tomar uma xícara de café com bolo. Conhecemos a casa, enxergamos os riscos que nela haviam que poderia lhe gerar quedas. Vimos que passa a maior parte do dia sozinha, mas que gosta de ir a igreja que fica a poucos quarteirões de casa. Conhecemos o carro que a leva, e o filho que a ajuda mais. E logo de saída ela nos mostrou os artesanatos que faz para complementar a renda. A visita, em termos médicos, era basicamente para renovar receitas, mas conhecer a mulher para além do linfedema foi nosso maior prêmio. Um médico centrado no paradigma da eficácia diria: se a erisipela é curada é o que importa, o resto é perfumaria. Mas, se essa pessoa não tem vínculo com um médico que regule o que deve ser rotina na sua vida e que esteja atento para o que sai do seu normal, ela adoece mais e tem menos resolubilidade no sistema de saúde. Sem contar que esse tipo de experiência é da ordem das relações autênticas entre os seres humanos. Um filósofo judeu alemão chamado Teodor Adorno, escreveu um texto sobre educação dizendo que o primeiro imperativo era fazer de tudo para que Auschwitz não se repetisse. Como aquela experiência dos campos de concentração podem se repetir? Caso nós venhamos a tratar as pessoas como números, ou melhor, continuemos a tratar. Essa é uma denúncia antiga, mas não devemos parar de denunciar. 


4) Quais são os desafios enfrentados pela medicina realizada de forma humanizada hoje?  

O diálogo com as ciências humanas. No último século nos convencemos de que a medicina é uma ciência que deve buscar a evidência, a certeza a todo custo. No convencemos facilmente disso quando olhamos o manejo das condições que põe nossa vida em risco iminente de morte. Mas, 80% das afecções humanas não fazem isso. Hoje em dia estamos vemos o alvorecer de uma sociedade que envelhece e tem que aprender a lidar com a decadência do corpo. Remédios de toda sorte seguram o que viria a ser um evento abrupto que conduziria à morte fulminante. Os médicos também estão tendo que lidar com outro tipo de medicina, que é a da prevenção. Essa medicina faz com que orientemos as pessoas saudáveis como se elas tivessem a possibilidade de adoecer. Muitas vezes já as vemos como doentes, apenas por terem a potência em si. Os conhecimentos, então, sobre a arte de dialogar, mas também e principalmente de ouvir, de deixar falar, de estimular viver e de buscar a felicidade apesar das doenças voltam a ser imprescindíveis para os médicos. Qual o valor terapêutico de uma boa amizade? Isso era um tema que um certo Epicuro falava à Grécia dos filósofos e que foi enterrado com o tempo. Pois esse filósofo achava que a filosofia era a medicina da alma. Pois bem, devemos voltar a estudar as coisas que importam para a alma. 


5) Em relação à lei de 2013 conhecida como "Ato médico". Ela modifica em algum aspecto a prática da medicina da família? Em alguns momentos parece fechar o papel do médico como exclusivamente técnico, como ela foi recebida pelos profissionais voltados para a comunidade?

A lei fala de atos técnicos estrito senso, mas o que venho falando aqui é universal. Todo profissional da saúde está sujeito à prestar culto ao ato do cuidado. O cuidado é para além de qualquer profissão. Somos os escolhidos pela sociedade para fazer isso de forma mais sistemática e com maior preparação. É esse cuidado que nos une como a grande classe dos profissionais da saúde. Mas, todos - é nossa condição humana - devemos cuidar uns dos outros. O simples fato de me esforçar por entender o que você quer dizer é uma espécie de cuidado. Como é algo que se espalha por sobre fronteiras, acaba unindo olhares. 


6) O que você acredita que o modelo da medicina da família pode acrescentar ao ser adaptado a outras especialidades médicas? 


Fico pensando no ortopedista que se especializou em ombro. Não podemos cobrar que ele saiba manejar uma hipertensão. E geralmente a pessoa que chega à ele é porque foi encaminhada pelo problema específico, cuja abordagem local pode ser a solução mais eficaz, por exemplo, uma neuropatia do nervo ulnar que precisa de descompressão cirúrgica. O que esse médico precisa saber é que aquele paciente precisa de um médico de referência, que saiba o que acontece com ele, a fim de entender onde aquela intervenção vai mexer no resto daquela vida, como vai influenciar não só no trabalho, mas no seu papel dentro da família. Os próprios planos de saúde vem acordando para essa necessidade e incentivando a busca por médicos de família como porta de entrada dos seus serviços.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Repetição solene

A mitologia um dia foi a religião de alguém. Uma das características mais marcantes dela é a existência de semi-deuses, que são homens filhos de deuses, exercendo uma missão cósmica na Terra. As grandes atitudes destes homens não apenas é venerada por muitos como teatralizada em culto pela vida inteira de um sujeito, numa repetição solene. 

As mitologias geralmente guardam uma verdade essencial que, mesmo despida de toda a retórica dos contadores de história, resta fatos fenomenais que reproduzimos no nosso cotidiano laico. 

Vou lhes contar um mito meu da medicina. 

Era uma vez um senhor médico que tinha a missão de cuidar das pessoas em três andares de um prédio abarrotado de doentes. Para que tivesse energia de concluir sua missão, ele se preparava o dia inteiro a fim de estar disposto pela madrugada a dentro. Seus olhos, quando se fechavam, mantinham o cérebro em uma suspensão leve. O mínimo barulho da porta tornava seu corpo ativo novamente. Sua mente farejava vidas à salvar pelos corredores. O encanto de uma medicina que tinha o poder de resolver as coisas rápido à beira de um leito faiscava no peito.

Reza a lenda que um dia, em seu horário de repouso, pegaram-no estudando um grosso livro, escondido detrás da bancada de prescrição. Estava longe do quarto de dormir, porque colegas conversavam por lá. Não os queria atrapalhar. Quando mais moço, ainda estudante de medicina, um professor havia discutido sobre a gravidade de um paciente e arrematado que naquele alguém deveria ficar colado. Ele assumiu a ordem na literalidade. Não foi para casa por três dias. Dormira no hospital por esse tempo, checando sinais vitais e alertando para mudanças de conduta no tempo de ouro. 

Decidi acompanhar esse mito quando eu era interno. E uma das cenas que mais me comoveu, referendando o que ouvira falar, foi quando ele decidiu ficar ao lado de uma paciente noite a dentro, olhando o gotejamento de seu analgésico, pois percebera que a sua presença médica ali potencializava o efeito do medicamento, a deixando em paz. 

***

Ontem, tive uma destas pacientes em minha frente. Já passava do horário estipulado da divisão da madrugada. Todavia, pus-me em guarda em frente de seu monitor. Queria ter certeza que os sinais haviam se estabilizado antes de tirar uma hora e meia de sono. 

Toda vida que repito esse feito, não me vem outro mito na cabeça. Lembro dele no mesmo instante. E mesmo antes. A lembrança me diz o que deve ser feito. Claro, que como todo bom seguidor de mestres, tenho meus muitos momentos de traição à esse rito. Quando o sigo - repetição solene - uma redenção parece aquecer o peito. O corpo, no outro dia, despenca à cama esgotado, como se tivesse sido meu calvário. Uma mensagem do celular toca. O colega diz que ela está bem. Então, permito o sono da noite, de dia. 

domingo, 10 de julho de 2016

Você deixa uma parte de si no plantão

Toda vez que chego de um plantão sinto a necessidade de comentar cada passo que foi marcante com a esposa. As horas despendidas de madrugada consultando pessoas ou cuidando à beira do leito das mais graves não retornam para o seu corpo, ficam lá. Este texto quer falar sobre essa nossa gradativa desintegração. 

Desde que me especializei em medicina de família, a inteligência não se dedicou aos postos de saúde ou a qualquer comunidade, mas às emergências vigilantes. Já fiquei tendo de atender, sozinho, às demandas que chegavam ao grande hospital geral, às que vinham trazidas pelas enfermeiras que se debruçavam sobre os pacientes (mal) instalados nos corredores, e às que desciam do primeiro andar onde ficavam alguns idosos e pacientes de longo período de internação. Ainda a esta época, dormia bem. Admirava-me da capacidade de deitar uma hora e me sentir restabelecido para o novo dia. 

Já se vão quatro anos desafiando a capacidade de reparação da mente. Eis que por agora ela cambaleia. No último ano tive alguns pesadelos. Menos do que deveria. O material de horror do que faço teria a capacidade de fabricar bem mais. Quase nunca sonho, e os poucos, me vem desperdiçados assim. Mas, talvez não seja desperdício. É o corpo querendo eliminar os tóxicos. 

Como disse, fico alguns dias digerindo o que vivi. As cenas mais marcantes querem ser faladas ou escritas. São rituais de exorcismo que me dou o direito de fazer em mim. 

De todos esses sonos rasos, o fato em comum é que eles não voltam. Não adianta espojar-se na cama, afundar-se, submergir no tártaro que for. Dividir a madrugada com as doenças arrancam uma parte de ti. Fumam uma parte da tua vida. 

Essa parte serviria para alguém? Fazemos, então, transplantes de fluido vital a cada vez? E quando morrem, sublimam o que deixamos ou levam ao caixão consigo? 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Humanidades médicas

Transmiti ontem um webinar para alunos de medicina membros da IFMSA Brasil (International Federation of Medical Students Assossiation, setor Brasil), do comitê SCORA (Standing Comittee on Reproductive Health including AIDS) e SCOPH (Standing Committee On Public Health). Eles me pediram para falar sobre Humanidades Médicas. 

Decidi falar sobre minhas aventuras em mergulhar nesse universo vasto que são as ciências humanas, e o porque é tão difícil a medicina se apropriar desse universo. 

Primeiro, expliquei que a forma que nós temos de aprender medicina é centrada na cabeça e nas mãos. Todo o resto do nosso corpo se mantém inerte no aprendizado. Bem diferente do pessoal do teatro e da dança, e cada vez mais da psicologia, cuja palavra de ordem é "experimente". E essa palavra de ordem leva o aprendiz a entender as possibilidades do próprio corpo inteiro. 

Veja que a primeira forma de aprender, que privilegia o cérebro, é filha de uma visão de mundo em que o espírito é superior ao corpo e o domina. É a mesma que dicotomiza radicalmente a vida. A segunda mostra-nos a vida como sendo única, sistêmica, e estas separações passam a não fazer sentido.

Se a coisa fosse diferente, encontraríamos mais aulas à céu aberto nas faculdades de medicina, com alunos andando, correndo, pulando, tudo isso em busca de sentir o coração batendo, e os ritmos que ele assume, a fim de aprender sobre eletrofisiologia. 

A segunda questão que nos afasta das humanas é a nossa vontade de verdade. O exercício da medicina se move sobre um substrato de pesquisas que buscam vorazmente a verdade sobre doenças. É claro que a verdade sobre doentes não é possível, pois doentes são pessoas singulares, cheios de acasos e idiossincrasias. Desde muito tempo, uma corrente platônica de pensamento privilegia o universal ao particular. Doenças são passíveis de se submeterem a universalizações. E, na nossa prática clínica, recebemos constantemente o feedback positivo de que é possível fazer isso, pois recebemos pacientes, os mais diversos, que conseguem ser enquadrados nos rótulos médicos de doença A ou B. 

Enquanto a medicina se mantém nessa prática universalizante, as ciências humanas, como a sociologia, a história e a filosofia, buscam cada vez mais o particular. Há uma crítica ácida sobre a razão totalizante. Um questionamento epistemológico desde o romantismo alemão se esta razão realmente é possível. Tudo isso se intensificou após a II Guerra Mundial, quando tentamos entender o que levou a um dos países mais cultos da Europa desenvolver crimes tão odiosos. Será que realmente nossa razão consegue abranger realidades totais, ou será que nós forçamos o que consideremos total na realidade arredia à homogeneização? Estaríamos torturando o real para ele nos dar o que queremos? Para isso, ver a mitologia do leito de Procusto

Então, comecei a falar sobre o aspecto do ethos médico, particularmente sobre a relação médico-paciente. Em recente pesquisa que fiz sobre a relação doutor-palhaço e o paciente criança, descobri que uma das dimensões mais importantes na relação de jogo dos dois é o conceito de duração

Duração é, segundo Henri Bergson, a verdade do tempo. O que nós vivemos no tempo é fluido, flexível, intuitivo. A consciência revela o que realmente é. O tempo não é esse carrasco do cotidiano, cujos ponteiros esmagam nossa experiência, mas é o tempo vivido, que pode ser diferente para cada situação. É o tempo que se distende quando, por exemplo, estamos com uma pessoa amada. Esse tempo deveria ser o tempo da consulta médica, mas constantemente impomos sobre a relação médico-paciente o tempo do relógio de ponteiros tiranos. A relação pautada no relógio talvez seja um dos principais motivos de burn-out, da fadiga da empatia, do desgaste da vontade de cuidar. 

Perceba que esse conceito que evoquei finca raízes na filosofia, flerta com as possibilidades da física, mexe com psicologia médica. São todas as áreas que passam ao largo da nossa consciência na faculdade. Porque o estudo da taxonomia das doenças não nos permite ter contato com conceitos como esse. 

Por fim, quis abordar um dos aspectos mais importantes da vida de um ser humano, que é a busca do sentida da vida, ou o sentido na vida. Se quisermos ser médicos de pessoas totais, e não de braços, pernas, fígados, deveríamos entender que nossa profissão acontece não só em uma pessoa singular, mas em uma pessoa singular que percorre uma história de vida, cheia de projeções, de metas, de buscas. A minha intervenção não pode ter um sentido meramente exorcizante, de extirpar um mal, mas, muitas vezes, deve ser uma negociação com o que cabe no projeto de vida da pessoa, com o que potencializa esse projeto. O lugar da medicina onde mais se enxerga isso é no final da vida, no paliativismo. A nossa gana por querer espantar a morte a qualquer custo nos impede de ver a vontade do outro sofredor, e de enxergar que a vida humana é de fato frágil, que nossa atividade de cura é finitia, e que, no cuidado com o outro, o diálogo de iguais deveria ser mais forte do que a nossa vontade de heroísmo. 

Referências de leitura:

1. SOBRE O CONCEITO DE DURAÇÃO em Bergson: Minha dissertação de mestrado, capítulo 7. https://issuu.com/allandenizard/docs/dissertacao_allan_marinho

2. SOBRE AMOR E A COMPLEXIDADE DAS NOSSAS RELAÇÕES, MAS SOBRE O QUANTO ELE É IMPORTANTE E TALVEZ O MAIS IMPORTANTE PARA NOSSA VIDA:
A revolução do amor, de Luc Ferry

3. SOBRE UMA ANÁLISEDE SOCIOLOGIA MÉDICA DO QUANTO A MEDICINA VEM PRECISANDO DE HUMANIZAÇÃO:
Contra a Desumanização da Medicina, de Paulo Henrique Martins
4. UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DA QUESTÃO:
Humanização dos Cuidados em Saúde: conceitos, dilemas e práticas, de Suely Ferreira Deslandes


Referências para assistir:

1. CONSTRUINDO UMA CULTURA DE HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE. 
EVENTO REALIZADO PELO SESC SÃO PAULO
DRA. ANA CLÁUDIA ARANTES


2. O QUE DE FATO IMPORTA AO FIM DA VIDA:




quarta-feira, 20 de abril de 2016

Acaso matemático

Estive ontem entregando meu pescoço ao exame daquele que vai me operar. A cura daquele senhor parece se operar desde o momento da sala de espera. Apesar de pagar particular, para antecipar a agenda, tive que compartilhar o espaço com dezenas de pessoas que, a maioria, não ligavam muito para o desconforto, já que estavam lá "pelo médico e não pelo espaço". 

Acredito que um somatório de resultados positivos nas mãos daquele cirurgião o fizeram ter fama suficiente para que nele fosse depositado fé. Dizem que entre os pagantes há os trabalhos gratuitos. Meu finado pai já exercia algo assim. Quem podia pagar acabava financiando a margem de caridade que aquele médico estava livre para ofertar. Mas, são boatos. Valem, de todo modo, para aumentar o índice de santidade e, consequentemente, o de fé. 

O fato é que valeu a pena o esperar. Jeito dócil, aperto de mão firme, a voz dele como que visita gentilmente o ouvido. Depois de ter baixado o veredicto de que era caso, sim, operável, me convence sobre não adiar tanto o procedimento. Depois fala sobre a estatística das falhas. Cerca de um por cento das operações podem cursar com "tal coisa". 

Bem que ele poderia ter falado que em um por cento das operações dele aconteceu "tal coisa". Mas, entregou o risco da operação ao deus da estatística. 

A medicina tem esse deus muito recente: a epidemiologia. Ela passou a governar nosso olhar da clínica com certa tirania. É que sua determinação acaba por nos acertar a todos. 

Certa feita, um amigo devoto dos acessos centrais (procedimento de urgência de alta complexidade), errou pela primeira vez o alvo da subclávia que apontava e perfurou o pulmão. Lamenta: "Caí na estatística!"

É como se nossos atos estivessem submetidos a uma lógica que nos escapa. São mais determinados do que poderíamos imaginar. Por maior que seja a curva de aprendizado que tenhamos, nossa imperfeição esbarra no erro, na falha, no efeito colateral, que acreditamos poder bem predizer na população das freqüências. 

Não é um acaso, pensando no acaso como ausência de causas, sorte, capricho de um Senhor perverso. É um acaso no sentido de não conseguirmos ainda estabelecer a causa, pois são infindas. 

O grande arqueiro erra grosseiramente. Por quê? Ora, houve a ventania, um raio a lhe cegar escapulido do sol em um espelho qualquer, um escape de arritmia do coração bom, uma convulsão parcial simples e que nunca mais terá. 

Mergulhamos na epidemiologia das coisas porque acreditamos, no fundo, que o universo é matemático e passível de se revelar, nu, em suas conexões mais íntimas, para os olhos do espírito. Sem perceber, acreditamos em uma realidade que nos transcende, que é lógica e que é comunicável. Acreditamos em tudo isso que é da ordem do espírito - e boa parte do médicos são ateus. 

quinta-feira, 7 de abril de 2016

O esforço pelo espírito na medicina

Não foi minha ideia, mas inventaram de me convidar para ser orientador de uma liga acadêmica que quer trabalhar o tema saúde e espiritualidade. 

Agradecido, comecei a planejar as ações, e conceder meus momentos de descanso para o crescimento desse projeto. Todavia, poucos que somos, parecemos perdidos. Recentemente fizemos uma seleção para conquistar mais braços, ou corações. Foi um fiasco. 

Variamos entre três a cinco pessoas que pelejam por tentar mostrar trabalho e fazer fermentar nossos anseios. As reuniões, contudo, quando não estão esvaziadas de gente, o estão de ânimo. As atividades curriculares esmagam qualquer tentativa de busca de novos horizontes. 

Falando com um professor de sociologia, que, por uma graça de Deus, leciona no mesmo curso médico - um professor de sociologia na faculdade de medicina! - ele me conduz a pensar que o que talvez falte é a compreensão de onde diabos Deus ou o espírito estão presentes na práxis dessa profissão. É fácil participar de uma liga de atenção primária. Vai-se à comunidade, aferem-se pressões, medem-se glicemias, constatam-se peso e circunferência abdominal, pronto! Temos uma informação mínima sobre risco cardiovascular e já podemos conceder alguma orientação que pode modificar a vida da pessoa. 

O que uma liga de saúde e espiritualidade faria no mesmo local? Essa é nossa grande dúvida. Como tornar o nosso fazer palpável?

- Sente-se. Vamos conversar sobre angústias. 

Seríamos, então, uma liga de psicanálise. 

- Não. Vamos falar sobre outro tipo de angústia: a da morte. 

Seríamos, então, tanatólogos. Porém, onde encontrar pessoas que carecem falar sobre as angústias da morte, sobre a dimensão do espírito, sobre a criação de tudo, e como isso pode influenciar no seu bem-viver? Chegar em meio à uma praça pública e questionar sobre o sentido da vida. Oh! Daimon bom de Sócrates, ajudai-nos!

As perspectivas em mente são tão distoantes de tudo o que fazemos no nosso dia-a-dia médico que temo conduzir estes meninos para um abismo de nossa profissão. Entretanto, exatamente por ser abismo é que precisa ser explorado. Este sentimento de "nada" é o mesmo que encontramos quando nos deparamos com vasto deserto. É inabitável? Não. É inabitado. 

Tivemos uma ideia, então, eu e o sociólogo. 

- Entremos no deserto. Sintamos a angústia do nada. Vamos conhecer as criaturas estranhas que nele se escondem. E que sentimentos elas nos passam. A lacuna que ele suscita em nós. 

- Chamemos isso de "territorialização epistemológica". 

- É apenas um nome. Poderia ser "caminhar". 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Entrevista concedida a estudante de medicina do semestre inicial

1. O que significa saúde para você?

Saúde não é o contrário de doença, disso eu já me convenci. Porque são raras as pessoas que não possuem alguma mazela corporal ou psíquica, nem por isso devemos considerar a maioria das pessoas doentes. Possuem doença, mas a saúde prepondera em muitas. Saúde está atrelada à força de viver, resistir, mudar, criar. Enquanto houver esse dinamus, que é espírito, há saúde. Doença é quando esse dinamus se arrefece. Veja uma criança: enquanto ela pula e corre não há um Pediatra que não diga assim: "o que mesmo ela veio fazer aqui?". Sou adepto do vitalismo. Veja lá o que significa isso.


2. O que contribui para que você tenha saúde?
Equilíbrio. Desde de as minhas interações celulares, passando pelas minhas interações sistêmicas corporais, atravessando as interações do meu espírito-corpo, chegando as interações sócio-familiares, alcançando a conexão com o divino. Nas sócio-familiares entra o quesito emprego bom para poder ter tempo de lazer com quem amo. A cena mais triste que pode existir é aquela da música do Chico Buarque: "O amor mal feito depressa, fazer a barba e partir." Por isso que a desigualdade social e a miséria são tão geradoras de doença.


3. O que significa doença para você?
Doença é quando há desequilíbrio em qualquer dessas esferas que te falei anteriormente a tal ponto que ultrapassa nossa capacidade de gerir esse desequilíbrio, superá-lo. É quando somos mais ou menos dominados pela sombra, o eu que até então controlava os reveses se enfraquece e precisamos de uma ajuda externa para nos recompor. Não precisa ser uma ajuda médica, mas de um que faça as vezes de cuidador.


4. O que faz com que você adoeça? Você acredita que, no dia-a-dia, sua saúde está exposta a riscos? Quais?
Vou começar respondendo a segunda parte desta pergunta, porque a primeira acredito ter respondido na pergunta 2. A vida é uma luta. Não há um só momento em que não estejamos em luta para sobreviver. Mesmo no instante em que parecemos estar mais plácidos, em nosso corpo há uma célula que escapa da divisão normal e quer ser cancerígena. Não logra êxito porque há apoptose e natural killers. Um dia o seu organismo pára de se auto-reconhecer e origina as doenças auto-imunes. No âmbito relacional, seus amigos ou amantes, que são humanos, estão sempre a um passo de te machucar. E isso não é razão para não amá-los. No espaço social, a qualquer momento, em qualquer lugar, você pode ser vítima de uma violência, pois as sombras da cidade estão cheias do produto de nossa desigualdade econômica, dos nossos ódios de classe ou mesmo de partido. Quando pensamos em humanidade, veja a Zika comprometendo nossas crianças, a Dengue sangrando nossos adultos, e a corrupção matando cidades inteiras. E no cosmos, só não temos um grande astro a nos atingir porque ainda não chegou a hora. Não estou sendo pessimista. Certo tipo de saúde que se chama sabedoria é saber que tudo isso pode acontecer e fazer de tudo para não perder a alegria do instante, do encontro com os amores, apesar de ter de cumprir o dever e as obrigações com o futuro. É preciso ser malabarista para viver, surfista para aproveitar as ondas, mas esforçar-se no nado até alcançá-las.


5. Como você resolve seus problemas de saúde? O que você faz quando adoece?
Na maioria das vezes tento dar um tempo para o meu corpo se recuperar por ele mesmo. Que a febre aumente para otimizar as relações imunológicas. Beber muita água para dar meio para o meu corpo agir, que os meus rins tentem purificar as toxinas. Repousar, mas não muito, para que eu não me convença de estar prostrado*
. Quando vejo que há risco maior que benefício para essa conduta expectante, cedo aos remédios alopáticos, mas venho tentando cada vez mais utilizar de homeopatia, naturopatia e yoga para me sanar.


6. Como tem sido atendido por médicos? Relembre suas últimas experiências.
Geralmente bem. Quando eles não estão sobrecarregados com a máquina mortífera e desumana da fila de espera das emergências, são corteses. Passei uma experiência ruim com uma pessoa que foi fazer o ultrassom da minha tireóide. Ela cedeu ao demônio da pressa. Transformou nosso encontro terapêutico em uma produção de número. Quase que ela sai fugindo de mim quando comecei a questionar para querer mais informações do que ela viu. Mas, isso foi um caso isolado. O grande vilão de tudo em todas as áreas é quando primamos apenas pela produção de um resultado, esquecendo de interagir bem.


7. Qual a importância deste posto de saúde para a saúde da sua família?
Como tenho plano de saúde, basicamente utilizo o posto para vacinar meu filho, pegar caderneta da criança e da gestante, e raras vezes remédio. Acho que o posto ainda tem muito o que melhorar para oferecer serviço para todos. Os clínicos precisam ser melhores treinados com residência de medicina de família, a gestão deve cobrar menos atendimento e deve aumentar o número de equipes completas, diminuindo o número de famílias adscritas por cada equipe, para que se possa fazer um trabalho de maior qualidade. Os postos deveriam ser mais amplos com espaços de convivência e auditórios confortáveis para palestras educativas e exercícios de alongamento para as mais diversas idades. Não é uma utopia. Rio de Janeiro, Florianópolis, Curitiba estão indo nesse rumo. O Ceará está marcando passo.




*Minha cunhada falou que esse é o único momento de mentira desta entrevista, pois quando estou doente pareço um convalescente em UTI. Viu só o que eu falei sobre as pessoas estarem sempre a um passo de nos machucar?! Ignoremo-la...

quarta-feira, 9 de março de 2016

Ouvindo outras histórias de quem quer ser médico

Há um espaço que venho cativando junto aos calouros da medicina da Universidade Federal do Ceará onde me formei. Nele falo minhas desditas, e cheguei mesmo a gravar o que costumo falar para disponibilizar ao público em geral. Você encontra o áudio de uma das palestras aqui:


Sem querer, o final foi cortado. E tem gente que me odeia por isso. Mas, fica como se fosse o gostinho de quero mais para vir falar comigo e perguntar o que foi que aconteceu depois, certo?

O fato é que hoje, vim novamente do convite que me fizeram. Contei minha história, casos e descasos, o quanto foi difícil, mas como eu me encontrei. E depois disso, uma surpresa. Eles haviam combinado de dividir a grande turma em diferentes grupos para que eles mesmos pudessem dividir a história de vida deles que os conduziram a querer ser médicos. Então, ouvi algumas leves histórias de vontades que flutuavam no cotidiano até repousarem em alguma ideia de ir para as bandas dessa profissão aqui. 

Maravilho-me sempre com o quanto somos verdes ao ingressar na faculdade, o quanto ela mexe com a gente, chacoalha, faz um rebuliço na nossa cabeça e no peito. É uma ilha de desafios que nos impelem à difícil arte de ser homem, de ser mulher. 

Hoje, como sempre, falei muito. Todavia, a maior gratidão de hoje foi poder escutar!