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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Medicina e Espiritualidade para IFMSA

Por estes dias anda acontecendo o encontro da IFMSA (International Federation of Medical Students Associations) em Fortaleza. Convidaram-me para ajudar em um espaço, o de medicina e espiritualidade. 

Ao chegar, o jovem que me ajudaria a conduzir perguntou o que achei da energia das pessoas. Sinceramente, disse que sentia-os cansados. Ele me revela que neste encontro há momentos de deliberação organizacional que corta a noite, acrescido de um momento de confraternização festiva. 

Tive a ideia, então, de começar perguntando a todos os trinta que apareceram para participar deste espaço quanto tempo eles haviam dormido. Alguns viraram a noite. A maioria dormiu entre 3 e 4h. Havia os de 1 e 2h. Os mais descansados estavam com o sono regulado entre 8h e 10h. Não poderia começar nada sem minimamente equilibrá-los. A yoga vem me fazendo um grande bem. Partilhei alguns movimentos com eles. 

Começamos depois, então, o diálogo por aí. 

- Sabiam que yoga em sânscrito significa selar o cavalo? Os hindus reconheciam que o espírito era o grande agente do corpo e que deviam fazer do corpo um cavalo domável. Algumas escrituras dizem que os deuses temiam que a prática de yoga provocasse um domínio tal que fizesse que o espírito iogue se desprendesse da carne. Seria uma derrelição da ordem divina. 

Queria conhecer mais esse público:

- Vocês acreditam em Deus?

Noventa e nove por cento acreditavam. Fiquei surpreso. Leio tanto livros de ateus que mostram uma realidade tão diferente na Europa, que esperava, entre estudantes de medicina, encontrar mais descrentes. Suspeitei que este Deus não tivesse a mesma imagem para cada um. Alguns definiram como o Deus judaico: o indefinível. Outros como o Cristão: o Amor-Deus. Outros como o Deus dos Iluministas: o Onisciente-Deus. Um garoto nos disse que deixara de acreditar em Deus ao entrar na adolescência. Mas, não era bem uma descrença absoluta. Parecia mais uma moratória. Deus, se existisse, não era acessível à nossa razão. Dever-se-ia esperar morrer para crer. Eu diria que não. Há um equívoco entre crer e saber. Ver Deus face à face: saber. Ter a ideia de Deus organizando a nossa identidade: crer. É o que os hebreus chamavam de sombra de Deus. Deus: uma nuvem. 

Perguntei sobre imortalidade da alma. Noventa por cento acreditava, e quem não, pelo menos acreditava ainda em uma realidade transcendente, onde a mente poderia ainda se aproveitar de certo status de independência do cérebro.

Os jovens começaram a falar sobre suas crenças, suas concepções de amor, de Deus, de salvação

Uma das coisas que quis trazer, em virtude de nosso Ocidente ser filho do cristianismo, é que o discurso judaico-cristão, ao contrário dos muitos discursos que floresceram à época do surgimento da civilização hebraica, era um discurso de derrotados. E isso não é pejorativo. Pelo contrário, demonstra a força que o discurso de um povo teve para manter acesa a coesão deles. Quando os outros povos eram dominados, sua mitologia e seu panteão morriam junto com eles. O discurso só existia enquanto estavam vitoriosos. Não tinha força para se manter vivo após o declínio da civilização deles. Mas, com os hebreus não foi assim. 

A perspectiva que eu quis fazer com que eles enxergassem era a de quem via as coisas do plano da Terra, de olhos relativos e mortais. Claro que houve aqui e acolá alguém levantando o discurso do próprio Deus: "Os outros feneceram porque não adoravam o Deus verdadeiro". O meu ponto não era esse. Segundo o Professor Dr. Jacob Wright, da Universidade de Emory, nos EUA, a grande questão, que faz valer a pena estudar profundamente os hebreus em um mundo laico, é entender que mecanismos são estes de sobrevivência que fizeram com que um povo se mantivesse coeso mesmo na desgraça, para além de Estados-Nações territorialmente limitados. Em um mundo globalizado como o nosso, em que os limites territoriais dizem cada vez menos sobre um povo, a resposta para esse questionamento seria uma pérola.

Na medicina, algo muito mais tocante importa para o indivíduo: diante de doenças que nos consomem, por vezes esfacelando nossa identidade diante do espelho (filme: Invasões Bárbaras), que mecanismos teríamos para manter nossa coesão? O discurso da religião aparece entre as respostas. 

Trouxe para eles uma divisão didática sobre as ordens a que estão submetidas nossas mais diversas ações e decisões: 1. a verdade (de responsabilidade da ciência); 2. o poder (da política); 3. o dever (da moral e da ética); 4. o amor ou o espírito (da espiritualidade ou da religião lato senso); 5. o absoluto ou Deus (da religião estrito senso ou da filosofia quanto se permite a metafísica). Divisão engendrada pelo filósofo André Comte-Sponville, no livro "O capitalismo é moral?". 

Um deles havia dito que Deus seria Ciência. Por esse esqueminha aí de cima, não. Deus estaria no topo, coroando a pirâmide. Mas, ciência, replica ele, envolve tudo isso. Não, minha tréplica, ciência não decide sobre o bem e o mal de uma conduta, apenas se ela é verdadeira ou falsa. Se há um senhor de 77 anos, preso a aparelhos no hospital, sobrevivendo pela bomba de noradrenalina, e seu médico decide desligar a bomba, esse julgamento não é científico. A ciência poderá apenas dizer se vai ser verdade ou não a morte conseqüente ao ato. Que valor moral isso terá? A moral, de outro modo, não implica amor. O comedimento da filha que está lá fora da UTI, pedindo para que não seja desligada a bomba de seu pai, não envolve apenas um imperativo ético, mas uma lágrima de amor. O que não a faz, de todo modo, ter ideia do absoluto. Mas, se, além disso, ela proferir o discurso que o sofrimento de seu pai pode vir a ser recompensando por Deus no momento oportuno, temos aí o campo mais óbvio da religião, embora não seja o único. 

Em certo momento, perguntei para os que não acreditavam em imortalidade se, mesmo não acreditando, eles tinham alguma forma de buscar perpetuidade. Um deles falou sobre o renome e a fama. Outro quis desmerecer essa busca. Pedi que não tentássemos diminuir a fala do outro, mas apenas proferir nosso caminho. 

Desde há muito, a humanidade se divide na busca de permanência, quiçá infinitude. Os heróis de guerra queriam a glória que firmaria seus nomes na história (Aquiles). Os santos, a ascese. Os pais, os filhos (perpetuação genética). Os budistas, a luz. Os cristãos, Jesus. Cada cultura, cada religião, cada filosofia já formulou discursos para enfrentar a difícil condição de sermos mortais. A vida nunca respeitou esse esforço: sangramos, a pele rompe, perde a elasticidade, mancha-se, os ossos enfraquecem, os músculos secam, esquecemos a todo o instante de tanta coisa. Vamos deixando o que somos pelo caminho que passamos. 

Uma mensagem muito importante eu tinha que deixar para aqueles meninos e meninas: somos movidos pelos ideais, pelas paixões. A verdade pode ser uma ordem primordial. Desde que temos consciência, estamos em busca de saber se a realidade que nos cerca é verdadeira ou mentirosa. Todavia, na medida que vamos criando corpo vamos fundando uma doutrina sobre a vida, uma cosmovisão que dá sentido ao que somos, ao que queremos ser, aos nossos sonhos. A busca de nossa verdade, então, vai se tornando uma busca de completar esse quebra-cabeças que somos nós, do que queremos ser. Um quebra-cabeças que já tem um cerne, mas onde peças podem ser adicionadas dando novo contorno, mas quase sem perder a forma (a forma segundo Aristóteles). A ciência é assim. Revelei-lhes que estudiosos da filosofia da ciência vem mostrando, a exemplo de Edgar Morin, que nenhuma pesquisa científica se dá sem influência ou conflito de interesse. Todo pesquisador é um apaixonado. A história de vida de cada um direciona o leme. É o que Morin chama de themata. A minha dica para eles é que não se envergonhassem de seus thematas. Eles dão sentido à busca. No final das contas, voltando para aquele esquema do Sponville, é Deus, ou o amor, ou o espírito que move a verdade. Sem eles, a verdade é nua e oca. 

Uma estudante ficou tão encantada com essa revelação que veio falar comigo depois. Não apenas ela, mas três. Os professores, quando entramos na faculdade, vivem pedindo para esquecermos o que fomos, para assumir, de forma isenta, a verdade da ciência. Bem, isso é um engano, falei, talvez eles mesmos não tenham percebido o quanto isso é impossível. Que eu é esse que abandona o si mesmo para ir em busca de algo para si? As pessoas tentam isso. Sim. E é por isso que temos vários indivíduos cindidos. São uma coisa no meio acadêmico, outra em casa ou na rua. Corpos possuídos pelo espírito científico. Quando entram na faculdade, deixam o próprio Espírito no cabide da entrada. 

Dos pontos que levei, esse parece ter sido o mais comovente. De uma forma geral, trazer temas de espiritualidade para esse povo foi como ter devolvido alma ao fazer deles. Eu posso ser eu na minha busca de ser mais? Era o que a moça me perguntava, como se eu a estivesse abençoando na jornada dela. Meu Deus, como não?! 

Dos milagres mais lindos que presencio na vida é poder compartilhar assuntos que me são caros e são acolhidos com amor no coração das pessoas. Como algo que palpita em mim pode fazer palpitar o que há no peito de outro? Milagre que flui. 

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