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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Virando médico

De vez em quando me chamam para dar uma palestra para os recém-ingressos a fim de contar minhas desditas (inúmeras!) na faculdade e dar o ar de minha graça que simboliza a sobrevivência, apesar de tudo. Acho que, se fosse resumir todas as lições em uma frase, diria: vocês precisam viver a dor para saber sobre ela. 

Depois de quase ter desistido da faculdade ao oitavo semestre, entrei no internato e, em pouco tempo, fui ver como funcionava a medicina na zona rural, imediatamente após ter vivido a morte de papai. Fui para uma comunidade no alto da serra. 

Engoli em dois dias o choro do luto. Resolvi em uma semana as pendências de pecúlios e organização de vida burocrática-cidadã para conforto de mamãe e parti. Recepcionado com um jantar por conta da secretaria de saúde, conheci pessoas maravilhosas. Andei pelas ruas frias da noite escondendo a orfandade no peito. Entrei em igrejas, creches e casas abandonadas aproveitadas para ser ambulatório das gentes. Quase não conseguia fixar a atenção nos raciocínios clínicos desenrolados pelos médicos que acompanhava. Mas, lembro muito bem um penhasco de onde dava para ver uma coluna de luz brilhando uma cidade coberta de serras lá embaixo. Desde há muito: mais fruir a beleza que exercer a busca da verdade, mais a arte que a ciência. 

Ao final do estágio, o pulmão me surpreende com a primeira crise de asma longe de papai. Era quem me tratava. Sempre entreguei o mérito do raciocínio clínico para ele. Onde está agora? Aqui, dentro de mim! E fui estudar para aquietar minha crise. Peguei as melhores evidências e teci um plano terapêutico. Deu certo, ufa! 

Havia nascido um médico ali. Sem diploma ainda. O que faltava, parecia, era que a medicina fosse para mim um assunto de "viva ou morra". Parecia, também, que foi preciso que meu pai-médico morresse para que eu-médico pudesse viver. 

Por que é tão difícil a gente crescer sem precisar que outros morram ao nosso redor, hein, Natureza? Que equilíbrio é esse que a senhora teima em manter? Gostaria de estar trocando figurinhas com o velho. Mas, se ele estivesse por aqui, tenho para mim que ainda estaria dando as cartas, o grande Araquém!

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