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domingo, 21 de abril de 2019

Por um retorno da Alquimia

Como não fui o que se pode chamar aos olhos dos professores de bom aluno, muito embora não parasse de estudar e querer entender a medicina, sou hoje um desgarrado (desgraçado?).

O que sempre me inquietou na nossa prática foi o distanciamento que temos da alma humana, ficando em uma superfície fastidiosa e infinita. Naqueles dias de faculdade, passava com penar ao ver exposto na biblioteca um tratado de milhares de páginas exclusivamente sobre ribossomos. Vitória do cristianismo, ou melhor, de certo tipo de cristianismo

Muitos abordam a questão de esse cristianismo ter calado a filosofia (tida como ciência natural) e mais tarde a própria ciência (experimental) e ainda mais as ciências humanas sobre o que é de mais caro ao homem: a salvação de sua alma. Naquela idade média tardia se dizia que qualquer conhecimento que se afastasse da teologia oficial era insuficiente para abordar esse tema, provocando mais confusão do que salvação. Hoje, derrotada a igreja, simplesmente venceu o discurso de que salvação da alma é balela de missa. Quando muito, o trabalho desse tema foi relegado ao divã de psicanalistas que estão privados de abordar qualquer tipo de transcendência. Tudo da mente do homem deve se explicar dentro da sua própria história tangível. De certa forma, então, a igreja tinha razão: a ciência, dita moderna, amputou-se dos instrumentos e da linguagem de falar da alma, para a alma. Alguma psicologia sobrou no lugar, apartada da medicina.

Inventamos, os modernos, a arte de cuidar da psique? Não. O conhecimento disso é antigo. Quando dizemos hermético, referimo-nos a conhecimento da época de certo Hermes Trimegisto, um deus, um semi-deus, um homem-deus, do Egito antigo que desenvolveu ou revelou conhecimentos tidos hoje como ocultos. A necessidade de segredo não era outra coisa senão a precaução de não deixar a coisa escapar para mentes inábeis. De outro modo, conhecimentos que eram superiores demais a ponto de ofuscar os incautos. 

Teríamos sido mais honestos se tivéssemos rejeitado esses conhecimentos como complicados em vez de supersticiosos. É assim que toda uma história da ciência foi forjada a partir da ideia que astronomia ultrapassou a astrologia, química a alquimia, e parapsicologia a teurgia. Como se houvesse continuidade entre elas ao ponto de se poder falar em ultrapassagem. Não há. A química aborda um conhecimento muito específico, se valendo de técnicas muito particulares do que antes era do campo do alquimista. De outro modo, a alquimia é um mundo, e a química, uma vila. 

Se da química, temos nossas principais terapias cotidianas na medicina, não é de se admirar o caráter lacunar desta. Pelo menos, bem mais do que o era a alquimia. Justiça seja feita, onde progredimos? Progredimos no esforço de tornar problemas nebulosos em palpáveis e assim, passíveis de democratizá-los. Saímos de uma sociedade de castas para uma de acesso universal. Para tanto, conhecimentos herméticos não são possíveis sob pena de não se enquadrarem no modelo político que surge pós era revolucionária, a francesa e a americana como paradigmas dessa era. A educação oficial disseminada para todos exigia um currículo comum e reprimia aglomerados de nobres que poderiam gerar um contra golpe. A materialidade da ciência não apenas possui um motivo inerente a natureza da própria ciência, como também se refere ao teor da capacidade de assimilação das massas.  Veja que na Revolução Francesa, o culto aos santos foram substituídos ao culto dos dias da revolução ou aos mártires da mesma, os meses tomaram nomes de estações do ano. Tudo ao gosto do que é mais imediato para as gentes. Nem mediato, nem transcendente.

Movimento contraditório: a igreja lançou o interdito para a ciência, a ciência rejeita a igreja. Veja bem que não era uma questão de a metafísica não existir, mas de ser temerário a deixar nas mãos de qualquer um. A ciência moderna surge de mãos dadas com o jacobinismo, então, não poderia haver ciência que não fosse do povo para o povo. Vitoriosa a república, conhecimentos tidos como de elite foram desprezados. Esse processo é um que se estende por todos os séculos vindouros com idas e vindas conflituosas, mais ou menos representadas por achaques entre esquerda e direita.

O que temos hoje? Por um lado, um movimento antropofágico que quer devorar todos os conhecimentos tidos antes como ocultos numa era em que o compartilhamento da informação rompe todos os diques. Esse movimento é, em certo sentido, ainda fruto daquelas revoluções. Por outro, uma crítica necessária de que os conhecimentos trazem responsabilidade de uma vida inteira para adquiri-los e de outra vida para utilizá-los. Contradição imposta às ciência ocultas: se querem voltar nos dias de hoje terão de se submeter a vulgarização, mas para sobreviverem com toda a grandeza de antes poucos a conseguirão. Deverá ser para o povo, mas de elite. 

Esse conflito foi o mesmo enfrentado por Platão contra as seitas órficas. Por Jesus contra os fariseus. E longe de mim dizer que Platão e Jesus estejam errados. Talvez mesmo desconsideremos, nas nossas análises ligeiras, que mesmo Platão e Jesus tinham conhecimentos para o povo e conhecimentos para os seletos. Cabe aqui ressaltar, por exemplo, apenas para tocar com um dedo e fazer vibrar a superfície do assunto, que um dos temas mais picantes é a alquimia cristã, herética por natureza, já que surge de uma comunidade católica, ressignificando os fundamentos dos dogmas canônicos. Essa questão de se há duas linhas de revelação a partir de Cristo é a base dos movimentos heréticos e sua perseguição.

Os obstáculo sociais para as ciências ocultas terem espaço nos dias de hoje, aqui representada pela alquimia, são:
  • Como vulgarizar o conhecimento sem deixá-lo vulgar?
  • Como reproduzir uma prática cuja linguagem é inteiramente simbólica, de um simbolismo cultivado de forma milenar, sob um respeito de conservação sagrado, em uma sociedade que tudo quer traduzir para a linguagem dita atual, efêmera por natureza?
  • Como reproduzir um conhecimento que não separe palavra, gesto e rito, em seu mais alto grau de interdependência, em um mundo que vem transformando tudo em binário (0 ou 1), dispensando a presença, convertendo-a em realidade virtual?
  • Como reproduzir os resultados, atalho pragmático que se dá para a aceitação se não da ciência inteira, pelo menos de sua técnica, se os melhores resultados, talvez, se dão apenas na plenitude do exercício da ciência com todos os pressupostos de sua metafísica?
  • Em um mundo ainda preso sob duas censuras, as da ciência moderna, quando o assunto é desvendar a matéria, e as da teologia católica, quando o assunto toca o espírito, como reivindicar a autoridade de se mexer com estes dois polos do humano sem ser rechaçado da comunidade científica ou excomungado da igreja? Parece restar às catacumbas, no segredo da terra onde se sussurram espíritos, a evocação desses temas malditos.  

Nesse sentido, vejo que do jeito que estão estruturados os lugares de veiculação do conhecimento superior nada podemos fazer mais do que uma história disto ou daquilo. Daí para atualizar, no sentido aristotélico do termo, as ciências que foram desprezadas pelos modernos, convertê-las em algo do que pretendiam ser, faz-se necessário, no mínimo, a devoção à princípios e a aceitação de métodos cuja análise mesquinha relegaram a superstições do espírito de época.   

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