Páginas

sexta-feira, 4 de maio de 2018

As três forças da anamnese

Sabiam que o simples exercício da anamnese também envolve as três forças que venho tentando mostrar certa coerência entre elas, quais sejam, a força sexual, a do trabalho e a da morte?

A anamnese é aquela atividade básica da medicina de coletar a história da doença da pessoa que nos procura com o intuito de encontrar uma solução para aquela dor.

Como a força sexual aparece aqui? Temos o costume de fecundar a história das pessoas com a nossa lógica. Uma lógica aprendida em seis anos intensos de estudos. Não devemos esquecer, porém, de deixar nossa razão ser fecundada pela lógica delas.

Fecundação aqui parece um termo metafórico de extrapolação duvidosa, porém ele revela todo o cuidado, responsabilidade e paixão (pathos) necessários em uma relação de partilha que deverá gerar filhos (diagnóstico e terapêutica), que são tanto maior motivo de júbilo quanto mais bem concebido tiverem sido.  

A força do trabalho se mostra no esforço de resgatar e elaborar uma narrativa da doença que ajude a construir um objeto que guie o retorno à saúde. Após concebida a narrativa, ainda se deve dedicar à lapidação, ao estudo meticuloso dela, ao conserto de conexões quebradas ou incoerentes. Se na etapa da força sexual estávamos no âmbito do primeiro encontro, cheios do viço da novidade, na da força do trabalho, caímos no lugar da escultura, da técnica, da ars.  

Por fim, há uma ética que percorre todo o exercício da anamnese, que é uma que apenas aprendemos de fato ao lidar com diálogos em torno da morte: aprender a ouvir mais do que falar como símbolo do estágio final da aceitação do que a vida traz, incluindo seu fim. Essa ética nos devolve a uma humildade de saber que todo esse esforço pode não resultar em cura, mas pelo menos em uma conversa terapêutica diante de alguém que esteve aberto para tentar algo por aquele que sofre. A filosofia dos cuidados paliativos dizem ainda: alguém que está aberto para continuar tentando, de um outro modo. 

É assim que o bom entrevistador passa por estas três zonas sagradas: participar da concepção da história, trabalhar sobre ela, respeitar a cada momento a sua fragilidade. É assim que seis anos de faculdade servem para formar médicos medíocres, e a vida inteira, sábios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário