Todo semestre sou convidado para dar uma aula não usual à medicina: história de vida. Antes de conviver com minha orientadora de mestrado da educação nem sabia que isso era pauta de pesquisa. Hoje, a vejo como a chave para algumas portas que tento abrir na ciência dura.
História de vida, ou biografização, ou narrativas de si, é algo que posso explicar de forma bem simples: o ato de reconstruir sua vida através das suas próprias palavras em determinado momento. É você contar como viveu. Quem estuda os discursos elaborados com esse propósito percebeu várias particularidades que estão se amontoando em ciência, forjando capítulos nas ciências humanas. Uma das particularidades mais conflitantes com o que entendemos de história para a medicina é a liberdade da pessoa de ressignificar o que viveu através das palavras do agora. Para a medicina o nome disso é mentira, e dribla a possibilidade diagnóstica.
Dessa forma, como sei bem onde piso, começo minha aula desafiando os estudantes em um caso clínico. A história (da doença) da paciente vai se revelando na medida em que eles vão conseguindo decifrar as charadas dos sinais e sintomas. Depois do furor inicial, do diagnóstico mais provável encontrado, que era o gabarito que estava na minha cabeça quando formulei o caso, os levo para entenderem a diferença entre o que seria a história de um paciente e a história de vida contada por uma pessoa. Basicamente os faço perceber que aquela busca uma verdade diagnóstica, o sujeito condutor da construção sã desta verdade é o médico (às vezes é preciso estancar a verborragia do paciente); já na história de vida da pessoa, é ela que é o sujeito, e a verdade que importa é a que ela está conseguindo construir agora.
Perceba que aqui se chocam exatamente as duas epistemes das ciências irmãs e briguentas, grosso modo, a verdade geométrica, que independeria das variações da realidade, e a interpretação pessoal do vivido, que pega a realidade como argamassa de uma narrativa.
Para que, na medicina, a história de vida tivesse efeito de verdade, eu teria que provar ao médico que toda aquela narrativa aponta para a doença como entidade construída, que a doença não é um fato biológico independente que se apoderou do indivíduo forjando sintomas, mas é uma construção de uma caminhada.
Quando falo isso, parece um discurso sedutor para os humanistas. Tal visão respeitaria a singularidade e a potência dos atores sociais para moldar o entorno. Mas, sinto estar falando de uma abstração incognoscível para os epidemiologistas que dominam a nossa forma de fazer ciência, isto é, baseada em evidências. Porque o que o epidemiologista ou o pesquisador clínico busca é exatamente o suco da realidade que não se altera com os acidentes de percurso provocados pela intervenção humana. Daí eles buscarem as fórmulas matemáticas para lhes ajudaram nesta higienização das teses. Seguindo essa esteira de produção de entidades nosológicas, acabam por encontrar sinais e sintomas consensuais em vários indivíduos em tal magnitude que podemos dizer que, na verdade, não sofrem eles do peso da própria vida, mas de uma doença comum a todos, a partir da qual podemos formular protocolos de pesquisa a fim de entender o melhor tratamento para - a doença.
Não é fácil encontrar o campo em que estas duas vertentes vão se harmonizar da forma como a medicina ocidental oficial está cristalizada, então, como itinerário de pesquisa e de engrandecimento pessoal, estou indo atrás do estudo de outras racionalidades médicas que permitem vislumbrar o que seria a ponte entre estas formas de enxergar as histórias. Como a história de vida pode desaguar na história da doença?
Três formas já se me apresentam: o vitalismo homeopático, a antropologia da medicina tradicional chinesa, a perspectiva de causa-e-efeito do reencarnacionismo espírita. Desenvolve-los-ei em outros momentos.
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quarta-feira, 23 de agosto de 2017
quarta-feira, 2 de agosto de 2017
Querendo sair da faculdade logo ao primeiro dia
A moça chegou para mim com um desejo nos olhos, assim interpretei. Queria que eu abençoasse sua vontade de não permanecer na medicina.
Falou-me de ser muito boa em matemática e não gostar de biologia. Lembrei de um grande amigo que quis me convencer a permanecer na faculdade porque fora dela eu poderia ser isso ou aquilo, mas não médico. Dentro dela eu seria médico e depois poderia ser isso ou aquilo. Na verdade o argumento é fraco, reconheço. Ele não me convenceu pelo argumento, mas porque foi uma pessoa que esteve ao meu lado me incentivando todo tempo, ele e sua esposa, amigos adoráveis.
Jean-Paul Sartre achava que o indivíduo constrói sua história e que quando, por exemplo, ele vai perguntar o que fazer a alguém, já vai tendencioso para aquele que acha que vai endossar a escolha que esconde. Se isso não for uma lei universal, pelo menos parecia ser a verdade daquela moça.
O que alguém quer me falar quando diz que não gosta de biologia, mas ama matemática ao primeiro dia de aula de medicina, com lágrima nos olhos, que a mãe aconselhou que terminasse pelo menos o primeiro semestre, mas que achava que não adiantaria de muita coisa, etc?
Ela veio para mim porque sou quase da idade dela, tenho barba desgrenhada, não uso jaleco, não tenho expressão professoral. Creio que eu era o padre perfeito para a perdoar. E talvez fosse. Não porque acho que ela não deva ficar na medicina, mas porque acho que isso não é o que importa. Apanhei à faculdade demais para reconhecer isso. A grandeza desta vida é a formação da personalidade, o diamante que restará ao final do embate diário com as pressões sociais e os anseios que a alma traz.
A gente começa se conhecendo. O corpo parece uma coisa indomável sob o domínio do bebê, depois nos apoderamos dele como instrumento. Encontramos o nosso lugar em nós mesmos, depois entre os nossos, para então sermos arremessados para os estranhos. Querem que contribuamos com o projeto humano. Esse é o momento da escolha da profissão. Há lugar ao sol para toda ocupação, e todas elas geram vida.
Estou falando a partir de uma trajetória que flutuava muito na decisão de ser médico, cercado por fortes pressões familiares. Acabou que deu certo. Há quem não terá o mesmo êxito se quiser seguir o mesmo caminho. É que guardava em mim um diálogo mal feito com papai que precisava ser resolvido. Conto isso em outro lugar. Quando resolvi, passei a ser o médico que realmente queria ser, e, coisa risível, que meu pai também queria. Só que ele não viveu até me ver assim. Morreu um ano e meio antes de me formar. Fundi, enfim, minha vontade à dele, sem arrependimento, com carinho. Enterrei ele em mim, morreu junto o filho, floresceu o homem.
O ápice da formação da personalidade é se reconhcer parte de uma história infinita, nadando numa correnteza muito especial, e - momento de êxtase - ver o sentido de tudo isso nos planos de Deus, ou no que quer que valha como ordem transcendente ali logo ao final. Há quem não chegue aí. Um dia pretendo chegar. Espero que essa moça consiga também fazer desaguar o sangue dela onde o coração puder pulsar com mais vigor. Independente da profissão, o movimento é o mesmo.
Falou-me de ser muito boa em matemática e não gostar de biologia. Lembrei de um grande amigo que quis me convencer a permanecer na faculdade porque fora dela eu poderia ser isso ou aquilo, mas não médico. Dentro dela eu seria médico e depois poderia ser isso ou aquilo. Na verdade o argumento é fraco, reconheço. Ele não me convenceu pelo argumento, mas porque foi uma pessoa que esteve ao meu lado me incentivando todo tempo, ele e sua esposa, amigos adoráveis.
Jean-Paul Sartre achava que o indivíduo constrói sua história e que quando, por exemplo, ele vai perguntar o que fazer a alguém, já vai tendencioso para aquele que acha que vai endossar a escolha que esconde. Se isso não for uma lei universal, pelo menos parecia ser a verdade daquela moça.
O que alguém quer me falar quando diz que não gosta de biologia, mas ama matemática ao primeiro dia de aula de medicina, com lágrima nos olhos, que a mãe aconselhou que terminasse pelo menos o primeiro semestre, mas que achava que não adiantaria de muita coisa, etc?
Ela veio para mim porque sou quase da idade dela, tenho barba desgrenhada, não uso jaleco, não tenho expressão professoral. Creio que eu era o padre perfeito para a perdoar. E talvez fosse. Não porque acho que ela não deva ficar na medicina, mas porque acho que isso não é o que importa. Apanhei à faculdade demais para reconhecer isso. A grandeza desta vida é a formação da personalidade, o diamante que restará ao final do embate diário com as pressões sociais e os anseios que a alma traz.
A gente começa se conhecendo. O corpo parece uma coisa indomável sob o domínio do bebê, depois nos apoderamos dele como instrumento. Encontramos o nosso lugar em nós mesmos, depois entre os nossos, para então sermos arremessados para os estranhos. Querem que contribuamos com o projeto humano. Esse é o momento da escolha da profissão. Há lugar ao sol para toda ocupação, e todas elas geram vida.
Estou falando a partir de uma trajetória que flutuava muito na decisão de ser médico, cercado por fortes pressões familiares. Acabou que deu certo. Há quem não terá o mesmo êxito se quiser seguir o mesmo caminho. É que guardava em mim um diálogo mal feito com papai que precisava ser resolvido. Conto isso em outro lugar. Quando resolvi, passei a ser o médico que realmente queria ser, e, coisa risível, que meu pai também queria. Só que ele não viveu até me ver assim. Morreu um ano e meio antes de me formar. Fundi, enfim, minha vontade à dele, sem arrependimento, com carinho. Enterrei ele em mim, morreu junto o filho, floresceu o homem.
O ápice da formação da personalidade é se reconhcer parte de uma história infinita, nadando numa correnteza muito especial, e - momento de êxtase - ver o sentido de tudo isso nos planos de Deus, ou no que quer que valha como ordem transcendente ali logo ao final. Há quem não chegue aí. Um dia pretendo chegar. Espero que essa moça consiga também fazer desaguar o sangue dela onde o coração puder pulsar com mais vigor. Independente da profissão, o movimento é o mesmo.