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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A comunidade está fora de controle

Falando sobre a experiência que tiveram à comunidade com idosos, lamentavam porque a maioria não acedia ao convite da faculdade para que fossem ter momentos médicos juntos aos estudantes e professores. Tinham que ficar em busca de sexagenários para conversar no meio da rua, o que desagradou aos graduandos, passando a ideia de uma cadeira desorganizada. Junto à instituição de longa permanência é mais fácil o controle. 

É assim que todos nós, médicos, somos criados. Mesmo quando a atividade é na comunidade, busca-se o controle das pessoas. Bacon é que dizia que a atividade humana, em nosso século de Luzes, deveria se erguer ao ponto de estarmos "como mestre e senhor da natureza". Porque é contra ela que nos insurgimos. A pior das inimigas, a consideramos desde então. Vão atrás da repercussão que o terremoto de Lisboa de 1755 provocou nas mentes da época. A natureza: a inimiga. As luzes, nossa salvação, contra a superstição, contra o animismo, que considerava a natureza dotada de um mistério que nos subjugava, a quem deveríamos senão venerar, pelo menos temer. Contra o temor, o destemor de a enfrentar. 

Na medicina isso vai se refletir no enfrentamento da doença de forma sistemática, disciplinar. As bactérias são descobertas e o mundo entra em crise: dez por cento do nosso peso corpóreo são elas. Temos uma armadura de morte. Qualquer ferimento pode significar a derrota da vida humana. Surgem as vacinas, a penicilina. Os hospitais deixam de ser asilos para morrer e passam a ser castelos para curar, cheios de cavaleiros armados contra o sopro do dragão. Surge, enfim, a ciência vitoriosa. 

Todavia, era preciso disciplinar o olhar médico que, jogado sobre a natureza como rede de pescar, diagnosticaria o mal a fim de o sanar. Tanto melhor se a natureza ficasse quieta, amordaçada em laboratório ou em leitos hospitalares, enquanto olhássemos para ela. Para a doença tida como invasões bárbaras nada melhor que vestir o hábito de império romano. 

Esse retrospecto é desde o século XVIII*. Somos ensinados a tratar assim a doença desde lá. O que há de humano em nosso corpo é considerado uma variável espúria, que deve ser colocada em suspensão a fim de não atrapalhar o nosso estudo. Entendo que seja por isso que quando vamos à comunidade ela é tão arredia ao nosso olhar clínico, ao nosso convite de se submeter à norma médica, à entrevista,  ao exame  físico, quando ela está em equilíbrio com a natureza, com suas bactérias. "O que estes médicos querem comigo se eu não tenho nada?". Nada que nos interesse conhecer, de fato. 

Uma idosa saudável no meio da comunidade (penso aqui em minha avó) só tem a nos ensinar: a cuidar dos filhos e dos netos, a fazer tapioca, a andar com artrite como quem não tivesse, a rezar o terço, a cuidar da casa como se não houvesse filhas para ajudar, a partilhar o dia com a vizinha, pagar as contas, fazer as compras, assistir novela. Falar sobre seus guris! Isso não é coisa para médico. Graças a Deus, está fora do nosso controle. 

* Em verdade Aristóteles (384 - 322 a.C) já ensinava a busca pela essência (ousia) das coisas em detrimento dos acidentes de sua forma, aquilo que é mutável. "Sócrates é humano" e "calvo". E daí que seja calvo? Sua humanidade é essencial. Mas, o fato de ser humano é o que mais lhe torna um ser acidental! É o que nossa filosofia vai descobrir na pós-modernidade, e o que ainda não aceitamos na medicina.

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