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domingo, 28 de julho de 2024

Dormir

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Até terminar a faculdade eu dormia relativamente bem. O curso perturbou meu sono por longo tempo, mas eu conseguia repousar e me refazer. Quando me formei, os plantões me desorganizaram. 

O horário do meio da madrugada geralmente era o meu, porque não aguentava não dormir à meia-noite e gostava de ainda ter um sono sem preocupação até o amanhecer do dia, depois de cumprida minha obrigação no horário que me era designado. 

Quando passei à chefia de equipe, qualquer grave intercorrência da madrugada era minha, e as prescrições só poderiam ser fechadas quando virasse o dia. Por vezes, tirava direto após uma da manhã, outras tinha apenas duas horas de sono, mas sem profundidade. Sempre fui de abrir os olhos imediatamente ao sinal de quaisquer passos que a mim estivessem se direcionando.

Passados os dias de plantão, a insônia das duas da manhã me acompanhou. Era uma rinite ou apenas uma poeira de pensamento que já me acordava por inteiro. Para que as preocupações não se acostumassem a ser minhas companhias, deitadas comigo, dei de levantar para meditar. Como a meditação possui cronômetro incerto, aderi à velha prática do terço católico, com algumas variações conforme minha crença. O primeiro terço, sentado em um zafu ao chão, me esvaziava das imagens deste mundo, o segundo, já deitado, me entregava às alucinações relaxantes do sono. E me dava uma sensação de que, embora breve, aquele sono conduzido pelas repetidas orações era de uma qualidade ímpar.

Essa insônia foi uma sombra que me conduziu a um refúgio inesperado. E, embora o sono aos poucos tenha retornado à sua qualidade, inaugurei em mim uma tradição que há tempos me espreitava.

sábado, 27 de julho de 2024

Dietas



Ela tinha 103 anos. Era relativamente lúcida. Conseguíamos empreender uma conversa normal com ela nos dizendo o que sentia, apesar de algum déficit auditivo esperado. Naquela visita ela aproveitou para dizer algo que lhe constrangia. Possuía um desejo enorme por empada de camarão, mas sua filha permitia-lhe a empada apenas uma vez ao dia em dias alternados. 

Quando ela falava da empada de camarão, parecia que a mesma surgia projetada da sua tela mental à nossa frente, quase que palpável. Ela falava da empadinha que dava para salivar e o cheiro, o do desejo, exalava pelo ambiente.

A filha cortou a fala pois achava aquilo uma transgressão contra os cuidados da longevidade. Pedia-nos até para que a dissuadíssemos daquela ideia. Adicionalmente, apresentava uma constipação, e tangia nossa preocupação para que a convencêssemos a tomar o laxativo em pó, que ela rejeitava por ter gosto de limão.

- Ah, sim, de fato! Ele vem com eletrólitos que deixam a solução com gosto de limão. - expliquei.

Fiquei olhando a centenária agora na cadeira dela, pés apoiados em um banquinho, encolhida na sua vontade. Ponderei:

- Por que a senhora não dá a solução com empada de camarão? Aí vai parecer que é um lanche com limonada! 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Pergunta importante de uma amiga na plateia no lançamento da minha biografia


"Se você não tivesse sido médico, teria sido o quê?"

Minha resposta:

No mesmo ano em que passei para medicina, um pouquinho antes, passei para teatro. Eu sempre me dei bem com o pessoal das humanas. E todos das humanas com quem eu saía estranhavam eu ser um estudante de medicina. Tem um multiverso em que o Allan é ator.

"Mas aí teria sido tudo diferente, e você nem teria conhecido a Marília, né?"

Nesse mesmo multiverso em que o Allan é ator, adivinha só, a Marília é cantora. E apesar de a vida ser mais difícil, temos quatro filhos em vez de três. Eu não me canso de escrever peças de teatro para ver se um dia alguma tem alcance nacional, e ela não perde a oportunidade de mostrar seu canto. Os meninos reclamam às vezes do trabalho excessivo, é quando damos conta de que temos de ter um momento só nosso, e saímos para passear, fazemos piqueniques por aí, e eu brinco com eles de bila, de bola, de pipa, de pião.

Papai casou-se com mamãe jovem. E eles ainda estão entre nós. Todos os domingos vamos para lá, ter com eles. Mamãe brinca com o mais novo no chão. Papai reclama às vezes da minha profissão. Eu cansei de argumentar, nos últimos dias, naquele multiverso, só dou um beijo em sua careca e digo:

- Velho, te acalma, somos felizes!

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Eu sou o médico



Fomos chamados porque ela estava agitada, de uma forma violenta, há dias. Chegando lá, eram tapas no travesseiro, esgares de raivas intercalados por choro. Ela tinha 70 anos e clamava pela mãe. Outra hora, ficava repetindo contagens numéricas. Gritou ao se verificar sua pressão, sua saturação. Estava tudo normal. Mas, aquela raiva. 

Há anos estava acamada, porém vigil. Seus sonos mostravam-se perturbados, e essa raiva ia e vinha. Alguns remédios já haviam sido dados e associados. Uma internação havia sido tentada. Nada surtiu efeito duradouro. E tirá-la de casa naquela época só piorou. 

A enfermeira terminara de verificar os sinais. Olhara para o médico preocupada:

- Ela está em surto!

- Mas interná-la pode deixá-la ainda pior. Sairá de entre os seus, do lugar dela. - ele contemporiza

O médico então, depois de ter terminado de saber o suficiente do que se passava junto a irmã que mais tinha propriedade de todos os cuidados, se aproxima da paciente e ensaia um diálogo, com voz mansa e compassada:

- Boa tarde!

Um silêncio como resposta. 

- Eu sou o médico.

- Isso, doutor, diga que é o médico que está aqui. - estimula a irmã.

Empolgado, imaginando que sua autoridade anunciada poderia trazer alguma sanidade para aquela mente, prossegue:

- Olá! Eu sou o médico, sou o doutor.

Ainda o silêncio, agora com o semblante fechado, a paciente respira um tanto e com quase a mesma voz calma e baixa do doutor, assevera:

- G-r-a-n-d-e m-e-r-d-a!