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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Visita à comunidade

Elementos para a prática em campo e apontamentos de pesquisa


Logo no primeiro semestre, tomamos a liberdade de visitar a comunidade onde, a partir de então, fundaremos a maior parte de nossa prática. É a cercania da faculdade. 

Quando, no meio acadêmico, fala-se em extensão, tomamos por base que a universidade é um fulcro de produção de conhecimento que deve devolver à sociedade o que nela está sendo investida, isto é, devolver tecnologias que permitam prosseguir nossa caminhada de dissipar a ignorância. 

Algumas dessas tecnologias são estritamente utilitárias. Servem a propósitos bem mecânicos, entre os quais potencializar nossos meios de sobrevivência diante das adversidades. A maior parte delas categorizamos como tecnologias duras. Na medicina, são os antibióticos, e toda uma farmacopéia bem elaborada, mas também, os instrumentos de imaginologia que nos permitem devassar o corpo humano para além da visão desarmada, como o PET scan.  

Outras tecnologias, que viemos redescobrindo a bem pouco tempo, e que são a menina dos olhos da medicina à beira do leito, dizemos serem leves. É o olhar clínico, a acurácia da palpação, a agudeza da escuta dos mais diversos ruídos do corpo, mas também, e cada vez mais, o olhar entre as pessoas, o toque terapêutico, a abertura para a escuta das mais diversas falas do ser humano que está a minha frente, em presença viva e indiscutível. Há uma verdade, por vezes não exprimível em discurso cognoscível, de tudo o que outro traz na sua história de vida sintetizada naquela presença simples e óbvia logo ali.  É mais difícil dizer a que esses conhecimentos se prestam, pois prestam culto à ordem do ser e não do ser-para-algo. 

- O ônibus (tecnologia dura) serve para ir à minha amada. Mas, minha amada (o amor entre mim e ela e todas as sutilezas que nos unem - tecnologias leves), pra que serve?

Para visitar a comunidade é preciso desenvolver tecnologias leves. Entre elas, a etnografia, com seu olhar ampliado e sua descrição densa. Mas, uma etnografia desarmada. Desarmada no sentido que vou livre de pré-conceitos(1) e aberto para a descoberta do território que me acolhe. Essa ausência de pré-conceitos não é absoluta. Tenho de calçar certas habilidades que me permitam uma visão mais aguçada para detectar o que passaria despercebido por um olho à toa. Tanto é uma habilidade a ser adquirida (não-inata) que, nas primeiras vezes que se levou os alunos para mapear o território, a atividade foi infrutífera. Que frutos esperar de uma terra não arada, pobre dos nutrientes que poderiam fazer a árvore do conhecimento frutificar? Nesse semestre, decidimos apenas levá-los para já entrar nas casas e entrevistar as famílias, preencher questionários semi-estruturados, e já ir pensando quais informações satisfariam tal ou qual campo de instrumentos de conhecimento da dinâmica familiar (Ecomapa, FIRO, PRACTICE). 

Todavia, antes das entrevistas nas casas há o chegar nas casas. 


Pelas ruas

Há pelo menos duas grandes ruas que fazem os carros irem e virem da faculdade ou do fórum. Parecem ter sido construídas em planejamento ulterior, pois em sua margem imediata há comércios aglomerados. À montante, uma delas é estreita e vem de uma urbanização não lógica, cortada por alguns matagais, desde um grande lago, contornado por uma imensa avenida deserta, também dando impressão de ter sido forjada ulteriormente para facilitar acessos de carros. 

O que parece primordial nestes lugares são as habitações. As travessas que dão para elas não são pavimentadas e são oblíquas. Não há saneamento por estes becos, e um sulco em seu centro escoa as águas das chuvas. 

Boa parte das casas são coladas. Compartilham uma parede. A intimidade do som dos interiores parece ser fragilizado por esta arquitetura. O grito de uma casa pode ser perfeitamente ouvido pela outra. Talvez nem é preciso grito, conversas corriqueiras já atravessam o concreto. Não é difícil imaginar ter de sussurrar para guardar segredos. A intimidade das roupas também é exposta. Havendo dificuldade de espaços na profundidade das casas, e estando o sol escasso por estes dias, as roupas em geral, e as íntimas incluso, se acumulam expostas nas varandas e, em muitas delas, na própria frente da casa, em varais improvisados. Essa exposição, que em condomínios de classe média é denunciada rapidamente como corruptoras da estética das fachadas, não parece gerar desconforto entre os moradores e transeuntes dali, naturalizadas naquele cenário. 

Cachorros andam aqui e ali. Não parecem ser de raça os de rua, mas alguns domesticados e presos nas casas, sim. Os gatos são em maior número. Como é de praxe entre estes, não parecem ter donos. São mais sujos, também. E um deles parecia estar bem doente e traumatizado logo em frente a uma das casas que entramos. 

Eram dez horas da manhã e, desde antes, músicas cortavam o lugar, bregas, sertanejas, antigas, e todas nacionais. Vinham de bares. E já nestes - estamos às dez horas da manhã - alguns homens sentavam em frente de copos de cachaça. 

Núcleos de igrejas evangélicas eram mais notáveis, por serem mais numerosas, que igrejas católicas. Parece-me conseqüente da própria estrutura doutrinária destas religiões. A evangélica espalha mais líderes sacerdotais na comunidade. Uma casa, uma garagem, uma sala tem o poder de virar um centro de culto com mais facilidade do que virar toda uma igreja, com abóbada, vitrais e chancela vaticana. Fabricar um sacerdote católico custa mais tempo. Um pastor, em muitas denominações de igrejas reformadas, nasce de uma fidelidade à letra da bíblia, não carece tanto de divagações exegéticas, senão da arte de decorar. 

Devemos levar em conta a força de uma referência bibliográfica (não podemos esquecer que a bíblia é um conjunto de livros) que é tão confiável a ponto de o próprio ato de decorar seus versículos já confere poder a quem o faz. Diante de uma modernidade caracterizada pela liquidez de todos os discursos, isso é o que se chama tábua de salvação. 

Entre as casas evangélicas, uma placa chamava a atenção. Mostrava a imagem de uma miríade de cadeiras de rodas e muletas abandonadas. Não era para informar à vizinhança que ali havia doação de cadeiras, mas sim que havia força de milagre. Elas haviam sido abandonadas! 

Entre os substantivos que davam nomes para as casas de comércio havia anglicismos, nomes próprios, apelidos, nomes jocosos, mas chamou-me a atenção a repetição de um nome em pelo menos dois estabelecimentos: El Shaday. É uma palavra hebraica que significa "Deus todo poderoso". O grande monumento da cultura hebraica é a letra sagrada. O povo judeu só não se quebrou nas diásporas porque a letra os unia. As histórias sagradas davam um senso de identidade para além das terras. Talvez isso, associado a um certo senso mágico, faria com que as pessoas colocassem esses nomes em suas casas. Isso fala a favor, ao mesmo tempo, de um pertencimento cultural e de uma vontade de proteção.

Sobre outras religiões, não as encontrei. O que não implica sua inexistência, já que muitas acontecem nas sombras, e são mais caladas. Apenas uma convivência maior nos becos daquele lugar poderia nos levar a mesas mediúnicas, terreiros de entidades, salas de meditação. 

Há carros passando, mas a maioria não são dali. O povo da comunidade anda no lugar a pé ou de bicicleta. Há padarias e mercantis, além de muitas lojas de utilidades e vestimentas, depósitos de construção, marcenarias, consertos em geral. São lojas pequenas. Não há grandes marcas nem centros autorizados. Parecem ser o serviço que a própria comunidade presta àquela vizinhança como auto-provimento. 


Nos corpos 

O calor de nossos trópicos induz-nos à poucas vestimentas. Homens andam de camisetas ou tórax despido. As mulheres possuem calças curtas, blusas poucas. Grande parte não tem banho de loja ou de cuidados de salão. É um contraste evidente com nossas alunas. Os olhos acostumados à moda que me circunda estranha a combinação de roupas usadas por aquelas gentes. Seria um estudo para ser feito. 

Outro efeito dos trópicos é corar os corpos. Claro que há o fator da miscigenação gerado pelo caldeirão de etnias que aqui aportaram. O tipo sertanejo dominou entre nós. Mostra um espectro de peles pardas, muitas delas enrugadas e enrijecidas pelo sol. 

O sobrepeso e a obesidade toma conta das mulheres maiores do que quarenta anos. As varizes e as artroses de joelho são evidentes. Segundo os livros, obedecem a lógica da sobrecarga do peso sobre os pés, e da andança de todo dia carregando as compras. Vou abstrair, neste momento, a vulnerabilidade genética que justificaria as discrepâncias. 

Os homens eram menos sujeitos ao estereótipo da obesidade, embora ainda os houvesse, particularmente os dos bares. E sabemos que seus joelhos desgastam-se menos por outros tantos motivos anatômicos. Mas, outro estudo a ser feito seria da prevalência das dores de colunas, bem como do alcoolismo que se revela mais gritante à noite. Coloco estas duas entidades lado a lado, porque ambas são o reflexo de más formas de lidar com a dureza da vida. A coluna reclama não apenas das más posturas, mas de ter de sustentar o mundo nas costas - Síndrome de Atlas(2). O álcool ajuda a esquecer as dores dos machos que não se entregam ao desabafo entre pares - Síndrome de Prometeu(2), o titã que roubou o fogo dos deuses e teve seu fígado sujeito a eterna corrosão, apartado de seu irmão.

As mulheres também sustentam o mundo nas costas. Outros mundos. Mais um estudo em perspectiva: quais mundos, naquela comunidade, cada gênero e idade sustenta? Digo idade, porque mesmo na senectude, entre as classes populares, outras obrigações surgem no horizonte, como o cuidado dos netos pelas avós, enquanto a filha adolescente tenta complementar a renda de casa para sustentar o fruto da consecução do desejo não planejado. Daí, outras lógicas pato-lógicas poderiam emergir. Sabemos, da literatura, que se o homem enfrenta os reveses se alcoolizando, a mulher vai desistindo da luta em depressão. Síndrome de Deméter(2), que tem de prover os cereais da comunidade, mas mostra um humor invernal de quando em quando. Por trás das tristezas de Deméter há sempre um amor roubado.

A intimidade dos corpos das mulheres desde cedo, em torno dos vinte e cinco anos, é motivo de pesquisa pela medicina moderna. Sobre ela cai o fardo da prevenção do câncer de colo uterino. Os agentes de saúde reforçam a necessidade de fazê-lo anualmente. Quem não faz é vítima de reprovação. Sabemos que a cada duas prevenções normais, a mulher poderia se dar ao luxo de ser livre dessa invasão por três anos. Mas, prega-se a prevenção anual entre as camadas populares para se criar uma cultura da busca do mal, do achado precoce, da extirpação curativa, e assim cria-se a obviedade de que aquele desejo de intimidade é um prurido a ser combatido. Aos cinqüenta, seus seios deverão ser submetidos à prensa da mamografia, e novo imperativo a faz tirar a roupa. Desta vez a anualidade não tem escapatória. Se a sensibilidade tátil do tecido mamário é maior para esta ou aquela mulher, "trinque os dentes e se entregue que o exame é rápido". 

Para os homens, uma medida anual de um mero aperto de braço, o tal "tirar a pressão" é a única coisa que lhes é cobrada, idealmente a partir dos 18 anos. Desde, então, é de bom tom colocar-lhes na cabeça o uso indiscriminado da camisinha. Mas, nenhum oficial médico há de pedir para qualquer deles tirar a roupa no momento do ato sexual a fim de intrometer o condom. Aos cinqüenta anos, e só então, uma certa propaganda urológica quer trazer os homens para a mesa de exame. Os estudos, todavia, são conflitantes e nem todo médico é de acordo que essa medida nos salvaria das mortes do câncer de próstata. Intimidade resguardada. 

Outro estudo descritivo sobre os corpos destas pessoas é a respeito das cicatrizes de cesárea. Quantas mulheres a tem? Em um país com número de cesáreas alarmantes, as classes menos favorecidas não parecem ser a que mais alimentam as estatísticas. O Sistema Único de Saúde agradece e força essa cultura do "parto normal" porque é mais saudável, menos sujeito a danos e, muito importante, menos custoso. Não é mentira. Mas, é de se imaginar que se entre as mulheres dali alguma esboça a vontade da cesárea como ato de liberdade de não querer sentir a dor selvagem da parição, será melhor demovê-la dessa ideia torpe, já que as maternidades não dão meios para a consecução dessa liberdade, e não possuem anestesistas para promover um "parto normal" com menos dor. Apesar disso, de todas as mulheres que atendi no posto de saúde próximo dali, nenhuma reclamou dessa falta de livre escolha. Tanto o "parto normal" era o mais óbvio, quanto a amamentação exclusiva. 

Nos foi relatado pelos alunos que se depararam, em uma mesma casa, com a discrepância de duas falas, lado a lado. De um lado, uma senhora saudável felicitava a facilidade de acesso aos serviços do centro de saúde, de outro, um senhor, cheio de comorbidades, amaldiçoava a burocracia que o impedia de ter o exames que o médico solicitava em tempo hábil. Veja que o corpo quando adoecido faz mudar completamente a forma como o sistema o acolhe. 

Tomemos o câncer como exemplo. As políticas de contenção dos cânceres fazem abrir múltiplas portas para a detecção precoce. A coisa vai ficando mais difícil quando o câncer já está presente e se disseminando. Mais atenção de um só profissional e mais profissionais para uma só pessoa devem existir quando a doença impera. No outro extremo, há um só profissional espalhando um teste simples a mancheia quando a doença ainda nem se revelou. Eis a lógica da clínica, de um lado, e do rastreio, no outro. 

Não percebi a presença dos jovens naquela hora do dia. Estaria no trabalho, a maioria? Ou na escola? Ou, se economicamente ativos porém desempregados, dormindo? Aqui e ali lembro de um entregador (de água, de gás, de compras). A juventude permite a resistência e a velocidade que essa atividade exige. Se da literatura temos também o conhecimento alarmante da mortalidade por causas externas afetando este público, outro estudo a ser realizado seria o das marcas da violência nesta comunidade. Mais tempo nela nos permitiria conhecer as gangues que brigam pelo território, as bocas de fumo, os tipos de droga, a estatística do consumo. Uma coisa é visitá-la no começo do dia, outra dinâmica se processa na calada da noite. 

Sabe-se, de outras experiências, que a droga ilícita não tem face. Há os que já são demais dependentes. Estes são típicos e induzem medo. Todavia, a maioria não levanta suspeita. Do bêbado no bar ao entregador de água, e mesmo à dona de casa, todos podem já ser consumidores. E qual a proteção que se pode ter contra ela? A cultura do consumismo, da lógica do capital, que induziu a liquefação das crenças mais caras, buscando instilar em todos a necessidade de satisfazer prazeres gerados pelo produto recém-inventado é o fator de risco primeiro para a drogadição. Qual o discurso do drogado senão o "eu preciso daquilo"? É o mesmo dos clientes da Apple frente ao novo modelo de smartphone. Ainda me lembro de vovó que tinha seu vestido costurado várias vezes, e poucos vestidos no armário para renovar o que se perdeu, sob a justificativa extremamente plausível de "não precisar de mais, já que só tinha um corpo". Ela tinha suas certezas, fortalecidas pela religião, que funciona sobre textos que se pretendem superiores à corrosão do tempo. Para gerar um público de consumidores a primeira coisa que se tem de fazer é fragilizar suas certezas, convencê-los da insuficiência do que possuem. Devemos olhar com bons olhos a proliferação de igrejas nas zonas de risco. São formas da comunidade se defender do mal que as invade.

No mais, nosso destino eram idosos que apresentavam no soma o desequilíbrio da pressão arterial (a hipertensão) e do metabolismo da glicose (o diabetes). Estas são doenças ditas crônico-degenerativas que vêm se mostrando multicausal, quebrando o antigo paradigma biomédico que via por trás de cada doença um, e apenas um, agente maligno. Sabe-se que mesmo as infecções surgem e se proliferam porque, na linha que conecta a saúde ao momento da doença, houve uma soma de agressões sobre fragilidades psico-socio-ambientais. Não por outro motivo estas doenças eclodem no meio da vida: acúmulo. Os idosos tinham muito o que falar.   

Das casas

Não era tarefa dos professores entrar em nenhuma. Apenas deixamos os alunos entregues às pessoas que podiam recebê-los. No entanto, da porta dava para ver alguns outros tantos elementos que dariam margem para outras muitas observações: os quadros, as cores, os móveis, as fotos, os santos, o cuidado com a casa, o chão.

Os santos de uma casa não são elementos decorativos inertes. Eles anunciam um panteão. Há uma rede de crenças que os fundamenta. Sabemos que, entre as religiões que permitem a iconofilia, elementos de um antigo politeísmo se reencarna na forma das pessoas lidarem com seus ídolos. Cada santo é para um propósito na vida. Pontuo outro estudo: que santos há nas casas das pessoas deste lugar? O que representam? Que poder simbolizam? Por que tê-los em casa? 

Assim como o capô de um carro ainda quente revela um passeio recente, as casas, muitas delas, com puxadinhos construídos e tijolos ainda sem pintura nos sugerem movimentos das famílias. Alguém nasceu ali e não teve para onde ir. O dinheiro faltou para a tinta. A família cresceu e se tornou multigeracional. Um membro enlouqueceu ou caducou com crises de fúria e teve de ser isolado. Alguém perdeu a locomoção e as escadas para o quarto de cima se tornaram intransponíveis. Pode ser ainda para alugar o andar de cima a fim de aumentar a renda, ou se mudar para cima no intuito de transformar o andar de baixo em ponto comercial. 

Muitos casebres são escuros. A luz do sol é sufocada em um espaço sem ventilação. Constatando-se isso, a vigilância epidemiológica já sabe que terá dores de cabeça com os miasmas(3) circulantes.

Muitas casas ostentavam algumas mudas de plantas na frente. Perguntei para um dos donos de que eram: alfavaca, coentro, salsa, cheiro verde, pimenta. Os espécimes se repetiam. Uma flora domesticada que servia para melhorar a saúde e tornar os alimentos mais apetitosos. Outro estudo descritivo me surge à mente: mapear os elementos das hortas do lugar e, sobre as plantas medicinais, entender qual o conhecimento que as pessoas tem sobre os efeitos daquelas plantas, as formas de preparar o remédio, de consumir. 

Algo do espírito

Aqui apenas norteio zonas de investigação. Precisaria de muito mais convívio para tanto.

Difícil abordar esse tema, mas eu começaria pelas festas. Várias religiões se pautam pelas festas, as sagradas e mesmo as profanas. Lembrar que as festas ao deus grego Dioniso eram de vinho, sacrifício e danças esdrúxulas. Lembrar mais ainda que as tragédias são tão violentas quanto sagradas, vide a morte de Cristo. Como as pessoas vivem e ressignificam as datas festivas? Na antiguidade, gregos, romanos, celtas (o mais famoso povo "bárbaro"), bem como, ainda hoje, judeus e cristãos, todos celebram datas que importam para o espírito das gentes. 

Deveríamos fazer uma análise dos símbolos, também. Os templos se constroem sobre símbolos. A arquitetura é a mais simbólica das ciências. Desde a abóbada inatingível da catedral católica como a denunciar a pequenez do homem que adentra, até as entidades que se manifestam no terreiro fecundo das religiões afro-descendentes e indígenas a chamar o homem para sua essência telúrica. A astronomia um dia foi uma ciência simbólica, também, mas quem liga para as estrelas nestes dias. 

As artes revelam muito do espírito. Todavia, o campo de estudo é movediço. Seria preciso todo um olhar sobre o significado da arte para estas pessoas a fim de começar a fazer correlações. O conceito da arte mudou com o tempo. A relação dela com o divino transformou-se drasticamente. O surgimento da noção de gênio e de gosto na idade moderna reflete toda uma história do desenvolvimento da noção de individualidade e sua relação com o processo criador. Qual a diferença entre a arte técnica e a arte criação? Em que a arte ajudaria como estratégia de enfrentamento das adversidades? Como avaliar seu significado para o indivíduo quando ela se reduz a ganha-pão, quando, como na fábula, a moral da formiga esmaga a da cigarra. De outro modo, mesmo quando a arte mostra sua face de ganha-pão, não haveria nela também os elementos de coping, de resistência e de transcendência? 

Por fim, se tempo houvesse, seria o coroamento de todo esse processo sentar e ouvir as histórias das pessoas. Seria um afazer para dias, meses até. A melhor técnica de colher essas histórias seria com perguntas gerais e leves para que pudessem surgir da boca do povo frescas, improvisadas, brutas. Ouvir-se-ia sobre a história da construção daquele lugar ("ainda me lembro quando"), sobre a intimidade dos lares desabafadas entre vizinhos ("tu não imagina o que aconteceu"), sobre as angústias ("por que você está assim"), sobre os fantasmas e lendas ("dizem que"). E se a ética dos confessionários permitisse, com o devido sigilo, entrevistar padres, pastores, pais-de-santo, dirigentes de centros espíritas, figuras de autoridade de religiões xamânicas sobre os pecados do lugar, mas também sobre as virtudes, os exemplos de santidade. 

A guisa de conclusão

Falei à introdução que era preciso tecnologia leve para mergulhar em um estudo assim. Era preciso de leveza de um modo geral. Chegar perto das pessoas, saber entrar em uma conversa, saber prosear, saber a pergunta certa na hora certa, sem interromper o fluxo da fala. Saber também, em cada momento, decifrar o que o espaço está dizendo, o fluxo das gentes, as construções sociais. 

A pergunta primeira para o estudante de medicina é sobre que utilidade algo assim deve ter para o exercício da profissão dele. De novo volto ao tema, porque importa de fato a distinção: há coisas que não servem para nada. E importa que seja assim. 

A primeira das ciências que floresceu na humanidade foi a Astronomia, mesmo entre povos não navegantes como os astecas. Conhecer o céu dava um sentido para Terra, para a vida das pessoas. Vivemos sob a perpétua sombra dele. Com o tempo, o homem vai descobrindo o que fazer com aquilo. A ciência do saber fazer, do transformar o objeto cognoscível em instrumento manipulável é algo que acontece a posteriori. Um físico se debruça sobre o comportamento do núcleo atômico, o outro transforma a energia da fissão nuclear em bomba atômica. Claro que há exemplo melhores, um biólogo estuda os fungos, o outro desenvolve o antibiótico. O ser precede o "o que fazer com o ser". 

Aconselho que nesse começo se encantem com o ser das pessoas, da famílias, das comunidades. O diagnóstico é uma ciência futura que precisará do ser como fundamento. A epidemiologia descritiva também precisará apenas disso. Abrir os olhos para descrição é o primeiro exercício da virtude clínica. Saibam que clínica vem do grego, clinamen, que seria uma inclinação. No caso do médico, é uma inclinação ao corpo do paciente, é um debruçar-se, a fim de coletar todos os dados possíveis que o permita enxergar algo que forme uma entidade lógica de funcionamento sobre a qual possamos atuar a favor do restabelecimento ou manutenção da saúde. Contudo, anterior a qualquer formação racional é preciso os dados da realidade que bruxuleia a nossa frente. Com o tempo e prática você vai percebendo o que há de importante num piscar de olhos. Com o tempo e a prática. É preciso todavia estar aberto a surpresas, já que nem três vidas seriam suficientes para que a realidade se revelasse toda ao Espírito. Quantas vidas seria preciso? O Todo é inapreensível! Como o mar poderia caber em uma concha? Todavia, precisamos tentar fazer os recortes que nos ajudam a viver. 

Bem, essa prática é um recorte. Estamos voltando aos exercícios de alfabetização em que brincávamos de corte-e-colagem. Em breve aprenderemos a ler. Mas, é imperioso começar.   

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Formação médica (?)

Estive discutindo com a turma de estudantes de medicina que venho acompanhando. Deram-me a oportunidade ímpar de ser o tutor deles em um método que lembra o de Sócrates, com a ironia característica de quem sabe mas não vai dizer nada, apenas conduzindo aos poucos o parto do espírito para os conhecimentos que valham a pena aprender. 

Nossa discussão foi gerada pelo desespero deles. Ao contrário do círculo socrático, não é a vida que vai cobrar o conhecimento, mas, por ora, é a prova que se aproxima. Uma moça, muito inteligente no mais, me colocou contra a parede alegando que os conhecimentos práticos que pelejo passar, ela entende serem assaz importantes, mas a prova urge, e é esta que vai permitir passar adiante ou não. 

É que vim tentando por em prática o que sentia falta na faculdade. Somos arremessados em um conjunto de ensinamentos teóricos, principalmente no que tange as ciências básicas, que são desencarnados da realidade médica. Quando se pensa em canais de cálcio, de potássio ou de sódio, não se faz a mínima ideia o quanto o conhecimento sobre o funcionamento deles salva vidas diariamente. Então, vez ou outra, lanço desafios que tentam fazê-los enxergar a aplicação da coisa. Só que não faço ideia se essa aplicação será cobrada na prova. Nesse início a prova é grandemente decoreba, e ficar contextualizando gasta tempo de leitura que pode cansar seus cérebros. 

Então, eles entram em contato com outros grupos e vêem que estes chegam em objetivos de aprendizagem bem mais acadêmicos que nós, mais trabalhados até. Vou ficando feliz com o avanço deles em crescer coletivamente, em induzir o outro à participação, em respeitar o momento do colega, mas quando esse microcosmo de aprendizado se confronta com o macrocosmo da turma inteira, sentem-se atrás. 

Certo dia, discutimos sobre propriedades farmacocinéticas de anestésicos cotidianos das emergências médicas, e eles me vieram raciocinando com perspectivas de soluções para problemas bioquímicos que ainda estão para ser elucidados. Isso é uma vitória! Acredito que bem mais do que a matéria livresca presa nos neurônios. 

Todavia, a prova urge. Neste carnaval alguns devem estar se desfazendo sobre anotações de cadernos e livros digitais. Bem que ainda desejo uma forma de aprendizado diferente. Tudo bem que as vidas estarão em breve nestas mãos. Contudo, fico pensando o quanto essas singularidades deformam-nos: o conhecimento técnico urgente na cabeça, mas também a impaciência, o afobamento, a agitação, o desespero, a ansiedade, a falta de tempo de contemplar uma flor, de beijar o filho, de deitar com o amor. 

Acho que a faculdade de medicina deveria ser por mais tempo. Mas, não para contemplar mais matérias. Segredo inconfessável: se a vida inteira nós tivéssemos ainda assim não daria para contemplar um décimo. Queria mais tempo para que pudéssemos ter mais tempo para a vida. Só que custa caro a formação de um médico. Dos cursos, o mais caro! No meu caso, custou-me a vida de papai. Louco que estava para me entregar o diploma, velho demais também, o coração pára antes da vontade. O corpo dele em meus braços antes da faculdade finda foi meu diploma precoce, e num momento em que, enfim, havia me encontrado médico. 

Vamos lá. Prossigamos mergulhando nos livros. Perdidos em certo amontoado de letras, talvez encontremo-nos a nós mesmos.