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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Quem gosta de parto vaginal?

Nas nossas práticas de ambulatório de pré-natal, em que atendemos pessoas em situação de risco social do arredor da Unidade Básica, faço questão de sempre perguntar: "Qual a sua preferência de parto?". Em unanimidade elas respondem "o normal", que é o vaginal.

É uma pergunta idiota. As pacientes atendidas em Unidades Básicas do Nordeste não tem direito de escolha. Há uma possibilidade teórica de liberdade. Todavia, há um obstáculo gigantesco entre a teoria e a prática. Atendidas por médicos de família ou partícipes do Programa Mais Médicos, lhes é dificultado o direito de escolha do médico que vai lhes acompanhar até o termo, ou o obstetra ou a maternidade. Por praticidade, a divisão segue o critério de território. É aquele médico, aquele obstetra e aquela maternidade que cobre tal região.

A escolha da via de parto é indicação do obstetra que decide o que é o melhor, tecnicamente, para a ocasião. Não que isso - a escolha ficar ao encargo do especialista por critérios técnicos -  seja errado, mas é estranho que não seja igual para a rede particular. Quem tem um plano de saúde já diz sua preferência desde o início. E se o obstetra discordar, troca-se de médico.

Faço questão de perguntar para as gestantes que atendemos sua preferência, porque evidencia o choque do modo de vida daquelas pessoas com as nossas alunas. Entre estas, raras são as que se submeteriam ao parto vaginal, por causa da dor, das lacerações possíveis. Não há documentário que lhes convença do contrário.

Então, questionei:

- Esse movimento de renovação da vontade pelo parto vaginal tem crescido nas classes mais favorecidas. Que perfil de clientes vocês acham que exemplifica essa vontade?
- Os naturebas. - replicou a moça.

De fato, há uma certa predominância desse "comportamento natureba" entre as mães que defendem o parto vaginal. Como seria isso?

Ele nasce de uma consciência ecológica de respeito pela natureza. É afeito a acreditar que há uma razão que nos une, algo de divino e espiritual, mesmo que não seja Deus. O corpo, como partícipe desse conjunto, tem suas razões de ser em cada ato. Dessa forma, esvazia-se a culpa da natureza. Não passamos mais a vê-la como inimiga, mas como mãe benfazeja e providencial. Gaia. Não há porque lutar contra ela. Não há pecado imanente, mas uma inocência do que está por aqui e do que está por vir. Um gosto por pensamentos sistêmicos, isto é, aqueles que englobam numa só razão todos os efeitos e causas surge nessa população. Daí voltarem-se também para as medicinas alternativas que sempre possuem uma visão cósmica bem coerente e coesa embasando suas práticas, ainda que as pesquisas de medicina baseada em evidência não provem nada. Replicam: "a inexistência de provas não prova a inexistência". 

Na trilha desse pensamento ecológico vem uma crítica contra a medicina moderna, cuja ciência nasceu em busca de enfrentar a natureza má, que mata, que destrói. Enfatizam assim o malefício das nossas intervenções, exaltam a iatrogenia, isto é, o erro médico. É uma razão reativa. Detratam a tecnociência que embasa a medicina moderna a fim de fazer erigir novas formas de olhar o cuidado com o ser humano. 

Aqui a dor é entendida como um mal a ser sanado, daí o envolvimento cirúrgico-anestésico. Lá a dor é uma parte da vida, um prelúdio para as alegrias que advém do parto. Exaltam a liberação dos hormônios de prazer, como que o natural equilíbrio da balança após tanto sofrimento. 

O debate envolvendo essas duas correntes vem se enovelando. De um lado, o primado do especialista como burilador da natureza. Isso corresponde em arte ao classicismo. A natureza não é bonita per si, mas deve ser lapidada para tirar dela o diamante. Do outro, o primado da natureza sobre qualquer vivente. Nisso temos o romantismo alemão que via nos cartesianos uns tolos redutores. A natureza basta per si

Enquanto essa luta viceja na saúde suplementar, o que me inquieta é boa parte da população escolher o parto vaginal, não pelas benesses dele, mas pela necessidade social.  

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Trabalhe em emergência. Não, digo, não trabalhe, quer dizer...

Eu tenho um amigo que ainda peleja por sobreviver à faculdade de medicina. Sou professor e poderia direcionar esse conselho para todos os meus alunos, mas se pensasse neles ficaria algo distante, e quero uma fala de mão no ombro. Falo para meu amigo. 

Não trabalhe em emergências. 

Você chegará cansado demais em casa, seu corpo estará quebrado por dentro, seus ossos parecerão estilhaçados de tanto esforço. Nós dois que nos esmeramos no pensamento de humanização da relação de assistência caímos decepcionados com o sistema que come nosso tempo com o paciente. 

Não. Trabalhe em emergências. 

Lembrei que o conhecimento que aprendemos na faculdade é dinamizado como nunca antes à beira do leito do paciente, na margem da mesa da consulta. Os olhos são treinados para as diferentes cores da pele doente, para os andares quebrados, para os inchaços e as assimetrias, de tal modo que muitos diagnósticos você já os dá enquanto o paciente entra no consultório. 

Esqueça. Não trabalhe em emergências. 

Com o tempo você se confia demais nesse olhar aquilino e diminui a fala. Quando o bicho pega no plantão, você fica cego para o espírito, vê apenas corpos adoecidos, entra e sai das salas sem cumprimentar, apenas para dar seguimento a raciocínios diagnóstico-terapêuticos. 

Isto é, trabalhe em emergências. 

Em boa parte dessas entradas você vai ver que o remédio que acabou de prescrever logo atrás já fez efeito. As dores que chegaram gritando foram sanadas. O semblante calmo vem te agradecer já na sua entrada. Quando você exerce sua atividade com proficiência, a sua simples presença passa a ser alento e segurança para quem estava aflito, para a equipe até. 

Não, garoto, não trabalhe por lá. 

Esses poderes sobem a cabeça. Vem a vontade de fazer piada dos sofrimentos, por eles se tornarem comuns no seu dia. Por saber que essa morbidade não causará morte, que aquela passará em tal tempo, que aquela outra é psicogênica. Vai querer rir da desgraça, porque ela não está em seu próprio corpo, pois o que há no seu corpo é cansaço desejoso de descontração. 

Não, espera! Trabalhe, trabalhe sim. 

Queria que você visse a gratidão dos familiares quando consegue um leito em um hospital bom, ou quando, depois de todos os seus esforços, vigilâncias, dedicação, o paciente se restabelece. Receber alguns presentinhos simbólicos. 

Não espere. Saia logo de lá. 

Vai experimentar o amargo de ser o primeiro a dizer que "ele(a) não agüentou". E ouvir o choro contido, ou o grito desesperador. 

Espera. Não saia logo. 

Olhe direitinho para esse choro ou para aquele grito. Você vai passar por isso em todo lugar da medicina que for. Contemple um pouco. Acolha-o. Você vai passar por isso em todo lugar da vida. 

Mas, quando perceber que a emergência está te anestesiando da compaixão da morte, está, definitivamente, na hora de sair. Ela te engana sobre a infinitude da vida. Aprenda o que tem de aprender e siga adiante.

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