sexta-feira, 4 de maio de 2018

Amadurecendo

O primeiro blog que criei sobre minhas aventuras médicas chamava-se Desmedicina. O sentimento era bem este: desfazer aquela medicina que tentava se construir em mim. Eram as desditas na faculdade enriquecidas por um conjunto de reflexões que endossavam a revolta. 

Desativei-o quando me formei. Entendi que era preciso assumir a máscara da Eumedicina: viver a medicina do cotidiano com o que havia de bom e de ruim. Misturei-me com a atenção primária. Engoli o livro de medicina ambulatorial com um gosto que nunca tive. Eram os pacientes que batiam à porta para os quais teria de dar alguma resposta. 

A residência em medicina de família aprofundou essa medicina do cotidiano em mim. Depois vieram os plantões no grande hospital, o lugar de onde sempre quis fugir, mas que o destino me devolveu ao convívio. As rotinas hospitalares, assimilei-as, e até aprendi com os colegas outros tantos truques que não estão nos livros. O cotidiano, dessa vez, me esmagou. Os sofrimentos que anotava em prontuário, com a morosidade do hospital público e a superposição de doenças ao paciente que não havia entrado tão grave, me desleixaram. Entrei em certo patamar de suficiência. Acreditei ter chegado em um ponto ótimo, pelo menos para as necessidades dos lugares em que estava. 

Surgiu a oportunidade do mestrado em saúde coletiva. Reacenderam, então, os estudos em filosofia, teologia, sociologia e estética. Eram rascunhos, mas era mais do que se costuma ler entre os esculápios modernos. Junto com eles, a crítica política sobre a medicina que praticava. Todavia, agora ela vinha com uma carga de experiência que tornava meu discurso menos ingênuo, um pouco mais compassivo, mas ainda muito ácido. 

O título de mestre me permitiu reingressar em uma faculdade de medicina, agora como professor. Por outro lado, ainda mantinha a prática nas emergências. Um lado ajudava a enriquecer o outro. Como professor de saúde comunitária, meus exemplos sempre foram cheios das vivências do cotidiano. Como médico de emergência e regulação de destinos de pacientes sobressaía-me com falas de filosofia, sociologia, teologia e estética - os rascunhos. Em um contexto ou em outro, tudo isso era uma excentricidade: um professor de saúde comunitária cheio de experiência hospitalar, um clínico de quase-hospital repleto de falas das ciências humanas. Vale ressaltar que no primeiro caso a excentricidade era mais aceita que no segundo, onde me tinham como um maluco beleza. 

Algo que vinha como sombra de todo esse movimento era a fuga de enfrentar os lugares mais desconfortáveis para meu espírito. A objetividade, o protocolo, a disciplina, a memorização de itens não explicados, os imperativos, tudo isso se remetia a uma noção de hierarquia que me era repulsiva.

Até que meus estudos se depararam com a crítica da mentalidade revolucionária: o mundo como jamais funcionou. Devolveram-me o respeito pelas tradições, para as quais já tinha o coração aberto: uma porta para papai, outra para vovó. 

Mesmo as medicinas alternativas que comecei a estudar como elemento adicional de minha personalidade arredia me apontaram que nada se consegue sem objetividade, protocolo, disciplina, memorização de itens não explicados, imperativos. 

Esse movimento último da alma está me conduzindo a retomar os estudos do cotidiano médico oficial ocidental, afastar-me um pouco das ciências humanas. Os discursos sociológicos são intensos, mas as dores das pessoas não se combatem apenas com falas, mas também com elas. Não podemos desprezar o trabalho de todas as medicinas em querer cuidar dos sofredores. 

Depois de muito estudo - que ainda é nada - percebi um ponto em comum nas mais diversas experiências médicas, que de outro modo possuem visões de mundo praticamente inconciliáveis: todas são fundadas em tradições sagradas que acumulam esforços para entregar a melhor resposta para os pacientes que batem à porta. 

Vamos lá! Próximo capítulo: "distúrbios do equilíbrio ácido-básico". (No leitor de pdf ao celular: "Tibetan medicine, a short introduction").   

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