segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Ensinando sobre infância

Coincidiu de eu estar nos dois polos da formação médica falando sobre o mesmo assunto: infância. Aqueles que estavam atendendo crianças pela primeira vez e aqueles que, depois de ter visto tudo de ruim do ser humano, estavam voltando a atender mães, em postos de saúde, que se dedicavam a ir periodicamente ao médico para que ele acompanhasse o desenvolvimento de seus pequenos. O que eu teria para falar para estes últimos?

Decidi falar sobre as preocupações que as mães têm, principalmente as de primeira viagem. 

Os tempos são outros. As famílias se esfacelaram. Mesmo nas classes mais baixas não costumamos ver aquela mãe com uma dúzia de filhos. Esta, a vida tratava de ensiná-la qual dos meninos vingaria ou não. Todavia, os meninos que não "se criavam", infelizmente, não eram exceção. Toda mãe de muitos filhos que já atendi nesta cidade carregava em si alguns lutos que nem se lembrava ao certo se eram dois ou três ou cinco. Talvez esse esquecimento fosse por causa da idade, talvez por causa da sobrecarga. 

O fato é que hoje as família estão menores, esfaceladas como eu dizia, despregadas do tronco que as havia originado, da cidadezinha rural ou do bairro em que vira todos os seus crescerem junto consigo. A urbanização e a revolução industrial polarizou desconhecidos para o oco de mocambos, e as mães para disputar emprego junto aos pais. Não estamos mais na formação de comunidade tradicional, em que as funções eram divididas entre membros da grande família, os homens cuidando do sustento e as mulheres de todos os filhos. Lá, a família era tão próxima que os primos eram chamados de irmãos. 

É por isso que pegamos tão frequentemente, e mesmo nas classes menos favorecidas, mães despreparadas e cheias de angústia sobre tudo. "Meu peito não dá leite, está cheio de fissuras, ele chora demais todo dia, seu bumbum está assado, não fez cocô o dia inteiro, não pega o sono direto à noite, apareceu duas pintinhas vermelhas na coxa e na perna quando acordou, etc." E, durante a consulta o bebê está bem, dorme em seu braço, ganha peso normal. Falta ali a experiência de todas as outras mães  que já passaram por aquilo e que poderiam estar dando suporte. Às vezes as opinadeiras têm em excesso, aquelas que vão uma vez perdida, jogam uma dica e saem para não mais voltar. Aquelas que seriam as avós e as irmãs de outros tempos estão em falta. É aí que nós entramos, médicos e enfermeiras de puericultura. Somos a mão armada da civilização urbana que colocou suas mães para se apaziguarem com nosso discurso. 

Foi pensando em todo esse contexto que idealizei uma aula que buscava mais ensinar aos alunos como despreocupar as mães sobre o bom crescimento dos filhos do que uma que prestigiasse patologias. Sempre busco passar as informações de quando dá para esperar, quando devemos intervir menos e deixar a natureza acontecer (vis medicatrix naturae). Adestramos nosso coração para ficar atento com os diagnósticos mais escabrosos do corpo humano - portanto, interviri! - e perdemos a noção de que a maior parte da vida é seguir vivendo. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Por que a homeopatia não é crível?

Todos alegam que é por causa da diluição infinitesimal do princípio ativo das medicações. Isso é o de menos. 

(Importa dizer desde o início que este texto está sendo escrito por alguém que acredita na homeopatia e esteve aberto, nos últimos meses, a entender o discurso dos adversários.) 

Tudo começa no princípio de todas as coisas. Embora, Hahnemann, seu fundador, tenha se fiado na lógica aristotélica e resgatado princípios hipocráticos para desenvolver seu raciocínio, ele fundamenta a principal atividade do homeopata em Deus. 


"[...] o que lhe [ao artista da cura] era necessário e completamente suficiente [saber] para o objetivo da cura, o Senhor da vida colocou diante de seus sentidos." (parágrafo 12)

Três ideias fundantes da homeopatia estão nesse excerto: 1. O objetivo da cura; 2. A capacidade do homem em completamente saber o que pode curar o outro; 3. A possibilidade de outro ser completamente curado. 

Estas três ideias gravitam em torno da ideia de um deus perfeito, no qual toda dialética é resolvida, toda discórdia apaziguada. Um deus que é pai do homem e que o tem como herdeiro da criação, de tal modo que a ele pode ser concedido o dom de saber o que pode equilibrar o mundo, devolver sentido ao que parecia desviado. Só podemos aceitar que a homeopatia pode acontecer em toda a plenitude de sua promessa se estes três princípios forem contemplados: 1. que a cura seja possível; 2. que o homem possa exercê-la; 3. que o outro possa ser submetido à ação do "artista da cura". E isso, repito, só é possível se houver a transcendente ideia de um deus que garanta essas possibilidades.

Tudo isso já não é motivo suficiente para a filosofia atual duvidar dos poderes homeopáticos?

O ridículo nessa história é que os alopatas pretendem exatamente a mesma coisa, só que sem nenhum princípio fundante. Era isso o que Hahnemann criticava. Como podem os alopatas querer curar os pacientes se eles não sabem, de fato, para onde vão? Sua teorias são uma colcha de retalhos sancionada pela autoridade dogmática de alguns luminares que, porque obtiveram alguns sucessos, acreditam poder replicar isso ao infinito. 

Quando, após Hahnemann, a alopatia descobriu os antibióticos, a farsa da cura se tornou mais verossímel que nunca. Um século depois, a medicina se depara com a tragédia da longevidade, que lhe entregou o ser humano corroído pelas doenças crônico-degenerativas. Quando as afecções eram agudas, os antibióticos ajeitavam. Quando o sofrimento era prolongado, os médicos frustravam-se. Frustavam-se? Frustram-se! Hoje a medicina vive mais de doenças controladas do que de pacientes curados. Hipertensão, diabetes, enxaqueca, lupus, artrite reumatóide, osteoporose, osteoartrose, asma, rinite alérgica, epilepsia, depressão, aumento do número de infecções resistentes a antibióticos, etc. 

É nesse contexto de recrudescimento do incurável que as medicinas integrativas ganham força, porque prometem o que a medicina científica ocidental não logrou dar. Todavia, estamos em uma época completamente diferente da que viu Hahnemann fundar sua doutrina médica. Não se acredita mais em Deus como sendo o centro gravitacional das ideias. Perdendo esse foco, perdemos toda a credibilidade naqueles três princípios que elenquei. 

Ainda que o remédio de diluição infinitesimal seja ratificado pelos laboratórios das grandes empresas farmacêuticas e que a energia vital dos seres humanos seja fotografada por alguma câmera Kirlian otimizada pela Apple, sem a ideia de Deus, nada mais dá força para que a cura seja uma realidade plausível. A vida, nestes tempos secos, mostra-se muito mais com sua face trágica de que não há solução possível para as dores senão a de as aceitarmos como elas são e encontrar o caminho menos doloroso para a morte, aquele que pode, não espantar o mal, mas assinar com ele uma política de boa vizinhança. 

Se eu acredito na homeopatia, é porque a ideia de um deus perfeito que organizou o universo para que pudéssemos amar uns aos outros, e nele, neste universo, deixou meios para que pudéssemos exercer este amor, me é ainda muito cara.  

Hahnemann: um cartesiano do século XVIII

Caímos na idade pós-moderna na mania de pisar o pensamento cartesiano. E todo aquele que pretende fazer com que sua doutrina seja reconhecida pelo mundo, busca ter sua bota sujando o túmulo de Descartes.

A primeira injustiça que se comete é a do anacronismo. Acredito que se busca tanto destruir aquele discurso, o do método, por causa da força dele que o fez admiravelmente sobreviver até os dias atuais, separando o joio do trigo, e permitindo teorias aflorarem mais puras e, pretensiosamente, sem marcas de religião. 

Eis a grandeza de Descartes, em uma época que os cientistas eram calados por um Igreja ditadora, ele, sutilmente, tece a linha que divide os dois campos de batalha: dos conhecimentos que tratam sobre a salvação celeste do homem e dos conhecimentos que versam sobre a salvação terrestre. Neste último cresceu o que hoje denominamos ciência. E mesmo sem saber, quando as pessoas querem dar autoridade para seus movimentos e, para isso, dizem "não somos religião, mas ciência", estão sendo filhas de Descartes, cindindo a realidade, renegando a autoridade de uma igreja que poderia sufocar os vôos do espírito de criação. 

Todavia, até mesmo o filósofo do método se valeu do discurso religioso. O que ele abominava era o império místico que se fazia sobre o conhecimento do mundo e a visão de que apenas iniciados sacerdotais poderiam ter acesso aquilo. De tal forma que este excerto da obra de Hahnemann é completamente cartesiano:

"Só assim Deus, o sustentáculo da humanidade pode revelar sua sabedoria e bondade na cura das doenças às quais ela está sujeita, mostrando ao artista da cura [o médico homeopata] o que ele teria que remover, para, assim, restabelecer a saúde. Mas o que deveríamos pensar de Sua sabedoria e bondade, se ele tivesse envolvido e encerrado no âmago, em mística obscuridade aquilo que deve ser curado nas doenças (como pretendia a escola medicamentosa dominante, afetando possuir visão divinatória da essência intima das coisas) e, assim, tivesse tornado impossível ao Homem o claro conhecimento do mal, e, conseqüentemente a sua cura?" (parágrafo 17)

Era essa mística divinatória que Descartes abominava, tendo erigido um pedestal para o raciocínio crítico que, defende, aos homens foi concedido:

"[...] pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo."

Contra a opinião dos outros, e suas conclusões baseadas em métodos obscuros, é que o filósofo se levanta para fornecer o caminho que possa bem conduzir a razão para as conclusões certas, o que acredita lograr conseguir com os princípios geométricos. Ora, o Organon de Hahnemann não pretende outra coisa: desfazer-se da doutrina opiniática dos mestres alopáticos a fim de concluir, segundo a mais pura lógica, o que deve ser a arte da cura. 

Outra semelhança dos pensamentos, como se Hahnemann tivesse realmente sido leitor de Descartes, é como ele se utiliza do dogma da perfeição e da bondade de Deus para com seus filhos a fim de embasar a possibilidade de conhecermos o caminho da cura das doenças:

"[...] o que lhe era necessário e completamente suficiente [saber] para o objetivo da cura, o Senhor da vida colocou diante de seus sentidos." (parágrafo 12)

Da mesma forma, Descartes entende que apenas podemos distinguir o verdadeiro do falso fora da nossa consciência de sujeito pensante porque Deus existe, é perfeito e, não cabe a perfeição querer ludibriar quem quer que seja, ainda mais filhos seus:

"Pois, em princípio, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina Dele. De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras."

Os meus professores de homeopatia querem mostrar a validade desta nova medicina através da ordem do pensamento complexo, que não separa, que não distingue os elementos da natureza, o que acho perfeitamente válido. O que não acho é que devamos cuspir em Descartes para isso. Complexo é dialogar





Conhecendo o território dos homeopatas

Então, como havia falado alguns posts atrás, estou entrando no território dos homeopatas. 

Assim como em todo país, acreditamos ser unidos por um só nome, haja vista, nação, mas as tribos traem essa imaginação. Começando por estudar a homeopatia pela sua raiz, vou pensando que todo homeopata segue Hahnemann a risca e enxergo o óbvio: toda popularização perverte a origem dos princípios. É a lei do universo na ideia do Big Bang. No princípio era um ponto, então se espalhou, explodiu para todos os lados, partiu em bandas. 

Levei meu filho para a banda de um homeopata organicista e não unicista. Unicista são aqueles que, como o fundador, acreditam haver um remédio específico para a totalidade sintomática que você apresenta. Organicista seria aquele que devolve o seu olhar para a desordem das partes e vai buscando as preparações que tratam de calar apenas os sintomas, não se importando em desenvolver um pensamento sistêmico. 

Todavia, embora os unicistas me encantem, pela beleza da teoria, este organicista para quem levei meu menino me deu saudades. Lembrou-me de papai. A consulta não era demorada, mas era amena. Uma barba cerrada ressaltava olhos curiosos pela história que a ele contávamos. Ao redor de si, meio desgrenhado como a sua barba, ostentava um consultório que expunha sua vida entre a natureza cuidada como os jardins ingleses, que deixam tudo crescer conforme a vontade de Gaia. Talvez esteja aí a explicação de seu organicismo. Ele joga com as fórmulas e as semeia no corpo dos meninos e meninas que o procuram. Deixa que cresça a cura, sem vontade de domínio, com o gosto de deixar aberta a porta para um retorno próximo a fim de contemplar o crescimento daquelas plantinhas. O homeopata unicista tem o espírito francês. Muito embora Hahnemann tivesse sido germânico, mas sua doutrina arraigou-se na França, seu túmulo fora semeado lá. Ler o Organon era como ver o método de Descartes em ação. Vai duvidando de tudo o que é alopático - e alopatia era tudo na medicina - para deixar vir o que considerou a verdade do ato médico: a cura pelos semelhantes. E mesmo, como Descartes, a validade deste princípio repousa sobre a bondade de um Deus que nos trascende e de nós cuida (depois falo sobre isso). 

Como dizia, lembrei-me de meu pai. Se algum carinho guardo por qualquer pensamento organicista é porque o velho pensava assim. Vi ainda o exercício de uma medicina que há quase dois séculos foi enterrada, aquela em que o médico se fia sobre as própria evidências que acumulou na experiência dos brancos fios de sua cabeça. "Não dê banho frio no garoto", orientava, "no outro dia estará doente!". A faculdade que me formou ordenaria que eu jogasse de volta nele um "qual a evidência científica que o senhor tem dessa afirmação?". Deixei de lado essa crítica, me valeu a saudade. 

Vou em busca de unicistas para aprender o outro lado.